“Preciso admitir que aquela casa era a minha Terra do Nunca, era para mim o lugar mais incrível de todo o mundo...”
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
Lembrança é uma coisa engraçada. É uma coisa que é quase uma pessoa, tipo aquela gente que não vemos há anos e que, do nada, nos dá a honra de nos visitar quando estamos mais esmolambados, usando, orgulhosos, nossas roupas de dez anos e com a casa toda, em sinal de solidariedade, seguindo-nos nessa moda íntima e aconchegante.
A que veio ao meu encontro outro dia não quis furar essa linha de conduta. Caiu em cima de mim, repentinamente, enquanto eu já estava na cama, munida de todos os apetrechos necessários para aguardar o sono. Quando eu fechei os olhos, ela veio. E com uma força tão tremenda que reabrir os olhos, logo em seguida, nem se apresentou como uma opção.
Deitada bem ali, eu me vi de novo criança no quarto da minha avó. Eu consegui sentir de novo o cheiro daquele quarto, aquele cheiro de roupa limpa, bem guardada e com um leve toque de naftalina (que a minha avó nunca deixava de usar).
Também me veio a imagem da antiga cabeceira da cama de casal, que era uma espécie de baú, totalmente liso, de madeira clara, no qual ela guardava alguns lençóis e travesseiros. Aquele cheiro tão conhecido também saía do seu guarda-roupa, habitado principalmente por vestidos simples, casacos, colchas, cobertores.
Eu senti tudo isso, tantos (e implacáveis) anos depois. Se a máquina do tempo já tivesse sido inventada e fosse vendida em cada esquina como um par de sapatos mágicos, talvez a sensação de tê-la usado fosse a mesma que eu tive: a de ser subitamente arrancada do hoje, assim despenteada, com roupas de dormir, medos, cicatrizes, esperanças e tudo, e ser arremessada de volta a um outro hoje, morto há muito tempo. Foi uma sensação tão louca que julguei mesmo que eu tivesse comprado os tais sapatos mágicos.
Há tantos anos eu não me lembrava daquelas maçanetas, da cor daquelas portas, revestidas com uma camada grossa de um tom de laranja desafiadoramente sóbrio, que refletiam, sem vontade, um pouco da luz e eram cheias daqueles gruminhos que muitas tintas fazem. E, enquanto escrevo este parágrafo, não paro de ouvir o calmo e espaçado bleim bleim bleim do relógio que ficava numa parede perto da sala, que nos dizia com cada bleim espichado e preguiçoso a hora exata.
Preciso admitir que aquela casa era a minha Terra do Nunca, era para mim o lugar mais incrível de todo o mundo e pelo qual eu esperava o ano inteiro. Ali era onde eu sentia uma paz que nunca mais achei em lugar algum.
Quando eu voltei lá, já adulta, muito dali já não era mais o mesmo, começando por mim. Não havia mais aquele poderoso e indescritível encantamento. Foi quando eu descobri que talvez a paz que eu sentia não viesse tanto da casa, mas do coração de uma criança que via a magia ali.
O espaço dentro de mim ainda não estava povoado pelos senhores avantajados, intratáveis, ou melancólicos da vida adulta, isto é, as tais preocupações, as responsabilidades, as desilusões, as dores, as perdas e os cansaços. Daí a entrada possível e total em mim de todos aqueles momentos, sem ninguém para puxar-lhes as orelhas ou para mandá-los embora ou ir brincar em outro canto.
Não havia contratempos, medos, sustos ou impedimentos, eles eram absolutamente livres, leves e entregues como a menina que eu era.
Toda criança tem em si esse templo íntimo, fresco e aberto, do qual a sua infância se apossa e que nunca é abandonado pelas lembranças, mesmo com o esgotar dos dias. A vida adulta ganha corpo, ganha imensos espaços. Mas há lugares dentro da gente nos quais ainda residem esses instantes puros. E é lá, nesses pedaços mais aquecidos, protegidos e imutáveis, que há as memórias que nunca ouviram falar da morte.
TEXTO: Elaine Regina Vaz
INSTAGRAM: @elainereginavaz
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