Os deuses devem estar loucos

Será que nossa sociedade deixou de cultivar mitos, ou apenas mudou o foco para mitos atuais como o dinheiro, posição social e progresso a qualquer preço?

REVISTA VICEJAR - ARTE E CULTURA (Cinema)


Mostra a vida da tribo dos bosquímanos, de cultura primitiva, habitantes de uma região próxima ao deserto do Kalahari, no sudoeste da África. Nesse ambiente, somente um povo com experiência é capaz de habitá-la e de sobreviver às adversidades. Alimentam-se basicamente de raízes, e sobrevivem graças à água escassa.

Por viverem longe da civilização, ainda guardam crenças mitológicas, onde os fenômenos meteorológicos, assim como outros acontecimentos inexplicáveis, são atribuídos aos deuses. Embora seja um lugar longínquo, é rota de aeronaves que passam sobre as terras da tribo.

Jogada por um desses aviões, uma garrafa de Coca-Cola vazia cai próximo à tribo. Um de seus habitantes a encontra e, por se tratar de um objeto estranho, o leva a acreditar que seria um presente dos deuses. Esse é o início de uma história incomum, com situações inusitadas.

Os mitos

É interessante constatar que se trata de habitantes de vida simples, que buscam formas de sobrevivência, com suas crenças alicerçadas nas manifestações da natureza.

Como desconhecem qualquer avanço tecnológico, julgam que um avião suspenso no espaço seria a manifestação de um deus e o barulho de seus motores é interpretado como descontentamento divino. Embora de estilo primitivo, uma harmonia pura os une e os protege de sentimentos como a competitividade e mesquinhez, tão comuns ao homem civilizado.

Toda a atmosfera mítica é base do o desenrolar do filme e se mantém até mesmo depois que Xixo, um dos habitantes que encontrou a garrafa, “devolve” no final da história o objeto aos deuses, já que ele não mostrou ser útil à vida da aldeia. É uma demonstração de como a crença nos mitos era algo comum nas comunidades primitivas.

O contato com a civilização

Para nós, seres humanos contemporâneos, a busca do conhecimento e o consequente desenvolvimento são fundamentais, já que nos dão respostas às questões que nos inquietam. Para o homem primitivo do filme, qualquer contato com algo da civilização pode representar mais danos do que propriamente benefícios ao seu estilo de vida.

A garrafa vazia quebrou a rotina dos habitantes da tribo e passou a ser o centro das atenções, por ser um objeto enviado pelos deuses. Em razão de ser algo incomum, a garrafa parecia ser destinada a diversas utilidades. Mas, por ser apenas um único objeto, sua utilização passou a acarretar pequenos conflitos, incomuns àquele grupo.

Sendo algo que todos tinham interesse em possuir, cada qual procurava demonstrar ter direito de posse sobre a garrafa. Dessa forma, estava inserido no contexto dos membros da tribo um sentido de julgamento, uma situação nunca antes experimentada por aquele povo.

A relação mito versus realidade

Embora tenha vivido situações curiosas, o personagem Xixo sempre direcionou suas atitudes com base nas tradições e nos ensinamentos de seus antepassados. Ele, então, é designado para ser uma espécie de “salvador” da tribo, com a missão de devolver aos deuses o tal objeto indesejado, que parecia ser um presente, mas se tornou motivo de desentendimentos.

Assim, cabe a ele a tarefa de levar a garrafa até o “fim do mundo”. Para tanto, percorre regiões habitadas por povoados mais desenvolvidos e, apesar dos atrativos da civilização, ele cumpre a sua missão. Essa fidelidade inabalável evidencia a força que o mito exerce sobre o homem simples. Diante um canyon, atira o objeto “de volta à sua origem” e retorna satisfeito à tribo, onde é recebido como herói.

No final, paira a dúvida de o quanto seu contato com culturas diferentes poderia ter influenciado sua nova visão e o que essa sua experiência poderia acrescentar ao estilo de vida da tribo. Talvez a intenção do filme seja despertar no espectador a imaginação sobre as inúmeras possibilidades decorrente desse seu contato com o “mundo exterior”.

Evolução através da razão

Com base no contraste cultural entre a tribo dos bosquímanos e a sociedade contemporânea, é inevitável constatar que, mesmo vivendo uma vida primitiva, eles cultivavam uma harmonia social que não encontramos em comunidades avançadas tecnologicamente.

Será que nossa sociedade deixou de cultivar mitos, ou apenas mudou o foco para mitos atuais como o dinheiro, posição social e progresso a qualquer preço? Será que buscar uma maneira de anular o outro poderia realmente ser visto como uma forma evolução?

Não se trata de se defender um retrocesso a padrões sociais mais primitivos. Porém, propor uma ampla reflexão ao modo de viver do nosso mundo, que evoluiu graças ao uso da razão, mas que, curiosamente, nos faz ver que os relacionamentos atuais estão mais voltados à irracionalidade que ao equilíbrio.


 TEXTO: Paulo Cesar Paschoalini 
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O articulista atua como colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

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