"Na fila de espera do autógrafo, recorda: em toda a vida, esteve apenas uma vez num lançamento de livro. Foi há tanto, tanto tempo..."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____A noite começa a se espraiar sobre a cidade. Os namorados na praça parecem não se importar com a derradeira visita da lua crescente, nem com o sereno que tomba sobre as combalidas árvores.
_____Ele passa pelo coreto — que já conheceu dias melhores — e ergue os olhos ao campanário da matriz. Lá no alto, os ponteiros cumprem religiosamente seu mister. Não estou nem adiantado, nem atrasado, conclui, enquanto sobe os degraus que o separam do adro.
_____O casarão recém-pintado franqueia portas e janelas aos convidados. Ele adentra, recepcionado por um mural de velhas e desbotadas fotografias. Afasta o olhar — a noite não é para ausências nem saudades — e atravessa outro portal.
_____Cumprimenta os presentes. Como de costume, quase ninguém ouve. Não que estejam distraídos com assuntos mundanos ou literários: sua fala é, nessas ocasiões, timidamente inaudível.
_____Observa as janelas flertando com os canteiros. Desse ângulo, a vista debuta em suas retinas: além dos balaústres caiados, o casalzinho perdido em beijos cada vez mais ardentes, o coreto esquecido pela municipalidade, as árvores castigadas pelo rigoroso inverno.
_____Na fila à espera do autógrafo, recorda: em toda a vida, esteve apenas uma vez num lançamento de livro. Foi há tanto, tanto tempo... Ainda nem conhecia barbeador, a voz ainda entoava singelezas juvenis.
_____Naquela manhã, ao largar a mochila no sofá e exibir o convite, a mãe, sempre pragmática, decidiu:
_____— Vai você e seu pai. Porque num tenho roupa prum lugar desses. E também num vai dar pra gastar com cabelo, unha, costureira.
_____O salão nobre do clube intimidava muita gente, ele sabia. Inclusive o intimidava. Mas não podia recusar o convite: a poetisa era colega de classe, se davam superbem, e ela dissera, com todas as letras, que fazia questão de sua presença.
_____A mãe sabia de tudo isso — e sabia também que eram tempos de arrocho. O pai concordou: que ela comprasse, no cheque pré-datado, uma roupa para o filho; que mandasse o barbeiro deixar no fiado o corte de cabelo.
_____No sábado, foram à Wembley.
_____— As coisas de lá são caras, mas boas. Você vai ficar bem vestido — garantiu a mãe.
_____Calça de brim escuro, camisa bege de mangas compridas. Sapato não era preciso: os da formatura da oitava série ainda serviam. Bastava engraxá-los, recomendou o pai.
_____Chegou, enfim, a grande noite. O clube, iluminado e festivo, recebia os convivas. Sentaram-se numa mesa perto da sacada. Professores, colegas de turma, alunos do terceirão, gente bem trajada — como ele só via nas telenovelas. Garçons alinhados circulavam incessantemente. Tímido e ressabiado, observava a movimentação, morrendo de medo que alguém o chamasse para dançar ou zanzar pelo salão.
_____Quando, lá pelas tantas, anunciaram o início da sessão de autógrafos, o pai o empurrou à fila.
_____Tocava Alejandro Sanz enquanto ele, livro na mão, aguardava sua vez. Uma garota do colégio, que até então nunca perdera tempo olhando para seu lado, comentou:
_____— Cê tá diferente com essa roupa.
_____Ele sabia. Habituado ao uniforme — camisa amarela e calça jeans —, cabelos sempre desalinhados, estava mesmo diferente. Talvez até esquisito. Preferiu baixar os olhos, trocar o livro de mão, marcar a música com o pé.
_____A fila avançou. O sorriso da amiga poetisa, solar. Um flash espocou — nunca viu aquela foto, como nunca viu nenhuma foto daquela noite.
_____A escritora — nossa, era a primeira vez que via uma escritora de perto — começou a preencher, com letras belas e arredondadas, a primeira página do Visão Dupla. Errou, no entanto, a grafia de seu nome. O que não era novidade: acontecia a toda hora, em todos os lugares.
_____Agradeceu — certamente não ouviram — e voltou depressa ao seu cantinho. Enquanto afogava a timidez num copo de Coca, leu a dedicatória: Com grande carinho e admiração da autora. Abaixo da rubrica poética, o nome da cidade e a data.
_____Agora está ali — barba feita, cabelos ralos e grisalhos —, no segundo lançamento de livro de sua vida.
_____Mais um passo.
_____Cantarola para dentro, no seu espanhol fuleiro:
_____¿Quién me va a entregar sus emociones?
_____¿Quién me va a pedir que nunca le abandone?
_____¿Quién me tapará esta noche si hace frío?
_____¿Quién me va a curar el corazón partió?
_____A quietude da quinta-feira se insinua pela janela. O sino da matriz encerra as sete badaladas. As conversas prosseguem.
_____Entre um verso e outro da canção, ele se inquieta: Jordana Thadei, a cronista, escreverá seu nome corretamente?
Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras".
O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
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