Música é tempo

"Cresci ouvindo MPB, samba, Raul Seixas, Beatles, Rolling Stones, Fagner, Belchior, rock nacional; e, claro, as coleções de LP das novelas." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____A música tem o poder de nos arrastar para um outro espaço-tempo. Isso acontece no instante em que ouço Baby, na interpretação inigualável da eterna Gal. Volto imediatamente para a casa onde nasci, para aquele bairro em que minha família era vizinha de si mesma, onde perambulávamos pelas casas uns dos outros como se fossem extensões da nossa.  

_____Os muros eram baixos. Ouvíamos o chuveiro do vizinho e o aviso da esposa de que ele estava atrasado. Havia apenas um telefone por casa, que ficava na sala, sobre uma mesa com banco acoplado, afinal, a conversa podia durar horas. Todos escutávamos, ávidos pelas novidades de quem morava em outra cidade, ou mesmo num bairro a apenas quinze minutos de distância. Era uma época em que a saudade era sentida pelo timbre da voz.  

_____O fim de tarde era feito de cadeiras de embalo na calçada. As senhorinhas se sentavam para fofocar e observar as crianças que brincavam despreocupadas, sem medo de assaltos ou acidentes. Alguém trazia uma garrafa térmica com café fresco; outra, um bolo de macaxeira. E a festa se fazia ali, simples e completa. A hora de ir embora era marcada pela vinheta do Jornal Nacional, com a dupla Cid Moreira e Sérgio Chapelin. Em seguida, começava a novela; mas, se uma cena esquentava, mandavam eu brincar no quarto.  

_____O jantar era pão, ovo, café com leite em pó: Ninho, claro. Eu tinha um quarto, mas dormia no dos meus pais. Não conseguia dormir sozinha. Minha cama foi colocada ao lado da da minha mãe, e eu só adormecia enrolando seus cabelos. Eu era uma extensão do seu corpo, assim como as casas dos meus tios e primos eram extensões da minha.  

_____De todos os objetos do quarto dos meus pais, havia um que me fascinava: uma caixinha de música dourada. Quando abríamos, uma bailarina de colant dourado e lábios vermelhos girava, delicada. Eu a achava linda: esbelta, com uma cintura invejável e inatingível. Mesmo com apenas cinco aninhos, já criticava meu corpo rechonchudo; era o que os meninos diziam sobre mim na escola.  

_____Aliás, a primeira escola foi um lugar hostil. Os meninos sempre me apelidavam de algo maldoso; bolo fofo era o mais repetido. As meninas nunca me escolhiam para as brincadeiras. Eu sempre caía por causa das botas ortopédicas que usava. Preferia estar em casa, com minha mãe e minha avó. Torcia para chegar o sábado: dia de assistir ao programa do Chacrinha com elas ou de passear pelo centro da cidade. Íamos até a Guilherme Moreira para comprar os lápis coloridos importados mais bonitos que existiam; um luxo de quem morava em Manaus e tinha a Zona Franca à disposição.  

_____Nessa época, papai viajava muito pelos interiores do Amazonas, mas, quando estava presente, havia música. Ele tocava violão ou colocava seus discos na vitrola importada. Foi assim que meu gosto musical se formou.  

_____Cresci ouvindo MPB, samba, Raul Seixas, Beatles, Rolling Stones, Fagner, Belchior, rock nacional; e, claro, as coleções de LP das novelas. Lembro da minha mãe pedindo para ouvir Tetê Espíndola pela terceira vez. Lembro do programa Globo de Ouro, com os melhores cantores e bandas da época. Lembro de aprender a cantar “I just called to say I love you...”; até hoje meus pais se lembram de mim quando escutam essa música.  

_____É, nossos ídolos ainda são os mesmos. Sempre serão. Porque me remetem a um passado do qual sinto uma saudade doída, como um alfinete que espeta de repente. Uma saudade que chega sem avisar, e que me convoca à escrita e à música.  

_____Uma saudade de quem quer que o tempo ande mais devagar, que as pessoas se reconectem pelo olhar, pelos encontros demorados, pelas conversas jogadas fora, pelas ligações longas, por horas esquecidas, como dizia vovó.  

_____Não sei quando foi a última vez que fiz algo por horas esquecidas. Hoje, tudo é cronometrado, comprimido para caber nas vinte e quatro horas que se tornaram ínfimas diante de tantas atividades e urgências.  

_____E é por isso que, sempre que a música toca, o tempo cede. E, por instantes, tudo volta a ser o que era: casa, mãe, infância, calor, colo, vida simples. Vida plena. Que saudade!

 

 TEXTO: Myriam Scotti 

INSTAGRAM: myriamscotti_ 
Myriam Scotti reside na cidade de Manaus-AM. É mestre em literatura e crítica literária pela PUC/SP; possui curso de extensão em formação do leitor pela mesma instituição. Autora de diversos títulos e gêneros literários, entre eles Terra úmida, romance vencedor do prêmio literário de Manaus em 2020; Quem chamarei de lar? romance juvenil do PNLD 2021. 
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade. 

                             

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