A insignificância de ser "ninguém"

“... Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal...”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA (Poesia)


Os ninguéns
(Prosa poética de Eduardo Galeano)

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal,
aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

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Apesar de tratar-se de um texto enxuto, é fácil notar a abrangência das palavras de Eduardo Galeano. Inicia falando do sujeito desde o nascimento, quando diz que a filiação de um ninguém é de outro desgraçado, também “desconhecido” pela sociedade.

Os “sem nome” são todos aqueles anônimos, “usados e abusados” pelos detentores de sobrenomes de influência, que os oprime, lhes subtrai a dignidade e lhes confere a falta de identidade. Não se menciona nome, nacionalidade, cor, sexo, idade, ou qualquer qualificação, a não ser a miséria em que está inserido.

No mesmo estilo humanizador encontrado em outras de suas obras, Galeano retrata as mazelas e insignificância com que os indivíduos são tratados, em especial no chamado terceiro mundo, gravitando a miséria que foram condenados ao longo da vida, tratados apenas como meros números a serviço de lucros, também medidos em números, de acordo com a devida conveniência de quem age para se mantenha esse estado inalterado.

Os “ninguéns” são todos aqueles considerados muito mais como “algo” do que como um alguém dotado de sentidos e, acima de tudo, de sentimentos. São ignorados como pessoas, mas vistos como objetos a serviço de interesses do poder, que abrange as áreas política e econômica, além das mais variadas crenças existentes.

No final, o desfecho mais provável a esse tipo de vida, que, embora não seja diferente de nenhum outro indivíduo, talvez somente seja mesmo visto como ser humano no momento da morte, quando seu destino engrossa dados estatísticos frios, no mesmo tom da frieza com que se desenrolou sua anônima existência.


 TEXTO: Revista Vicejar 
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