"À noite é quando o silêncio no mundo chama, condensa e modela o silêncio do peito."
REVISTA VICEJAR – Literatura ( Crônicas )
A noite é a alameda dos mistérios, dona das coisas dúbias, das leves insinuações e dos olhares com um molejo próprio.
Pelo dia, tudo bate com força e de forma imediata nos olhos, menos o que nos estrangula o espírito. Mais tarde, quando o céu põe os pés no escuro, e o sol se retira, cavalheiresco, porque já cumpriu parte do seu acordo com a vida, algo muda. Nada mais é tão direto ao olhar; em compensação, as vidas interiores de cada um vão-se desprendendo de seus donos.
Bolhas que deixam seus aros originais e se agigantam, deixando para trás seus territórios familiares. Talvez seja uma compensação muito mais do que justa do Universo que o lado de dentro se assenhore do de fora, quando o de fora recua e caminha quieto, coberto de sombras.
Assim é que, à noite, se veem os gigantes andando nas casas: a solidão nunca admitida, a angústia alegadamente ausente, a falta que sempre nos olha, a saudade que nunca se torna antiga, a dor que chamamos de nada, a inspiração irreprimível, o amor teimosamente encoberto…
As bolhas dos poetas ganham as ruas, passando da altura dos prédios, junto com as dos compositores, dos escritores, dos pintores… Em suma, de todos que sentem a arte como a dona do seu sangue.
À noite é quando o silêncio no mundo chama, condensa e modela o silêncio do peito. E o divino, o belo, se manifesta. O dia tem seus encantos, mas a noite sabe ser sedutora desde os primórdios de todo o sempre.
Ela é experiente e há muito seduz os mais sozinhos e os que mais amam, os dados à boemia e os que quase nunca se separam da sala do escritório, os que se perdem nas praias e dormem sabendo das estrelas e os que descansam na breve cama de solteiro testemunhados somente por um bom vinho, um bom livro e uma lâmpada amiga.
Digo aos que amam o dia que continuem a amá-lo, eu também o amo, mas há coisas em mim que só a noite (re)conhece e, por herança, o silêncio filho dela, esse que nos conta as coisas indizíveis, esse que a arte sabe logo reconhecer e apreciar e que é a matéria-prima mais impressionante que existe.
A noite é um portal do mundo, ilimitado, apropriado, que todo ser humano pressente. Através do qual se veem os pés dos medos mais tenebrosos, de onde até escapam uivos de monstros longínquos. Mas é por onde os cantos mais tímidos da alma também atravessam, aqueles que só se sentem livres quando o silêncio da noite acorda em tudo...
TEXTO: Elaine Regina Vaz
INSTAGRAM: @elainereginavaz
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