Estava escrito no céu

“O céu estava aberto, quase sem nuvens, exibindo o mesmo tom de azul que trazia desde o início da semana.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônicas )


No começo da década de 80, morei durante pouco mais de três anos na cidade de Descalvado, distante 30 km de São Carlos, na região central do estado de São Paulo, que na época contava com cerca de 20 mil habitantes.

Trabalhava numa agência bancária da cidade, mais precisamente num setor chamado “Carteira Agrícola”, uma vez que o município tinha como principal atividade econômica naquela ocasião a agricultura e a pecuária.

Por ser uma típica cidade do interior paulista e ter uma população pequena na região urbana, muitos daqueles que precisavam de financiamento rural eram pessoas simples, semianalfabetas, que mal sabiam assinar, e o esforço na hora da formalização do Contrato era para, o que se podia dizer, “desenhar” o nome.

Apesar de a maioria ser gente simples e com pouco estudo, eram pessoas muito educadas e que viam em nós, que ficávamos do “lado de lá” do balcão, funcionários com formação capaz de orientar quem precisasse do Banco para financiamentos, aplicações e outros serviços oferecidos pela instituição.

Muitos deles ficavam admirados ao ver nosso desembaraço no cálculo de juros, na explicação dos termos técnicos utilizados nas cláusulas contratuais e identificação de detalhes contidos nos demais documentos. Ficava claro que eles nos estimavam pelo nosso conhecimento e pela prestação de serviço, a ponto de colocarem-se, equivocadamente, numa posição de inferioridade diante de nós.

Certo vez, lembro-me que o sol se fazia presente diariamente, com muita intensidade, e o calor forte exigia uma hidratação mais frequente. Era uma quinta-feira e logo de manhã quando eu fui para o trabalho, o céu estava aberto, quase sem nuvens e com o mesmo tom de azul que vinha mostrando-se desde o início da semana.

Era período de safra e logo no início do atendimento, recordo-me que, ao cumprimentar um dos clientes, perguntei como estava o sítio dele, com aquele calorão todo. Ele me respondeu que estava quente mesmo, mas que no final daquele dia iria chover.

Assim que saí para o almoço, olhei para o alto e lá estava o céu estampado de um azul que predominava de horizonte a horizonte. Ao constatar as mesmas feições de dias anteriores, confesso que cheguei a falar comigo mesmo, desdenhando da previsão meteorológica do matuto. “Vai chover nada; tá igualzinho ontem e anteontem. Com o mesmo jeitão” - pensei.

Na parte da tarde, o atendimento foi intenso e enquanto alguns clientes ficavam impacientes, outros destacavam a atenção dispensada. Mais do que isso, por serem pessoas sem formação escolar convencional, muitos agradeciam pelas informações prestadas, uma vez que diziam “não saber tanto quanto a gente”.

Antes do dia despedir-se de vez, uma forte chuva veio anunciando a chegada da noite. No interior da agência, nós estávamos encarregados de juntar os documentos e acomodá-los nos respectivos malotes para remessa, além de finalizar as demais providências burocráticas exigidas.

Houve até uma queda de energia, que, felizmente, durou pouco tempo. Na hora de deixar o prédio, a chuva ainda se mostrava presente e, acima de tudo, vigorosa. Quando ela mostrou-se menos intensa, fui para casa e, embora morasse a poucas quadras, foi inevitável chegar com a roupa toda encharcada.

Antes de dormir, ao me lembrar de alguns detalhes daquele dia exaustivo, foi impossível não recordar daquele cliente, que ainda na parte da manhã havia profetizado sobre a chuva. Isso remete a uma frase de Paulo Freire: “Não há saber mais ou saber menos; há saberes diferentes”.

Dentre tantas experiências adquiridas ao longo da vida, essa foi uma lição que aprendi e guardo comigo. Embora eu já tivesse certo grau de estudo, o que estava escrito no céu naquela manhã era o mesmo, tanto para mim como para aquele que era considerado quase “analfabeto”. No entanto, apesar de toda a sua simplicidade, somente ele foi capaz de fazer a leitura correta.

A partir daquela circunstância, sempre que me lembro daquele acontecimento, faço-me um inevitável e curioso questionamento:

Será que o tal “letrado” era realmente eu???








 TEXTO: Paulo Cesar Paschoalini 
BLOG: http://pirafraseando.blogspot.com.br 
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