“Criamos carapaças, habituados ao confronto, à rudeza do dia-a-dia, e do nada somos desarmados e encontramos paz no meio do caos.”
REVISTA VICEJAR – ARTIGOS E OPINIÕES
_____Parada numa rotunda, esperava a vez para entrar, quando senti o embate no carro por trás. Fiquei instantaneamente nervosa, fechei os olhos, respirei fundo e preparei-me para o confronto. Sabemos como são estas situações, todos têm razão e ninguém é culpado. Saí do carro, e do outro sai um senhor, já na terceira idade, e quando me olha, o faz com uma expressão que me ficará na memória para sempre, e diz:
_____– Desviei o olhar apenas um segundo...
_____E com esta simples frase... desarmou-me... Não só pela humildade com que o assumiu, mas pelo seu olhar marejado, cansado, vulnerável... Também ele, se apresentava ali diante de mim, receoso de discussão, de exigências, explicações. Olhei para o meu carro, uns riscos, coisa pouca. E por isso lhe disse:
_____– Está tudo bem! Acontece a todos nós... está tudo bem...
_____Olhou de novo para mim, com uma profundidade assustadora, de tal modo desconcertante que nem sei definir o que senti, tão estranho foi o momento, e nada de mais, a maioria tinha decerto agido como eu. Mas algo transcendente aconteceu depois entre nós naquele momento, e foi esse que me marcou.
_____Numa rotunda movimentada, de máscaras, em plena pandemia, este homem, um perfeito desconhecido, estendeu a sua mão para mim, mas não em forma de cumprimento como seria suposto, mas aberta, voltada para o céu... E eu, instintivamente estendi as minhas e com elas acolhi a sua. E repeti...
_____– Está tudo bem, tudo bem...
_____E ficamos ali os dois, como que sós, num gesto imprevisto, mas com uma carga emocional poderosa, breves segundos mas que se eternizaram na minha memória e coração. Depois, baixou o rosto em sinal de gratidão e cada um seguiu seu caminho.
_____O mundo continuou a girar, as pessoas continuaram nas suas azáfamas diárias, e nada pareceu mudar... nada. Será? Para aquelas duas pessoas, por momentos a verdadeira essência prevaleceu, a compaixão, a humildade, a aceitação, o perdão.
_____Quantos momentos destes vivenciamos, ou deles temos consciência? Quantos deixamos passar e nem percebemos? Momentos sim... mas para mim, os sinto como partículas de luz, semeadas aqui e ali, tentando resgatar o que de mais real deveríamos ser, e viver.
_____Um momento, um acontecimento banal. E no entanto, nele, pude experienciar como dois perfeitos desconhecidos num momento de suposta tensão se conectaram. Ainda sinto uma estranha emoção dentro de mim, entre o choro e o êxtase. Talvez tenha voltado a acreditar na humanidade.
_____Criamos carapaças, habituados ao confronto, à rudeza do dia-a-dia e, do nada, somos desarmados e encontramos paz no meio do caos.
TEXTO: Ana Acto
FACEBOOK: http://www.facebook.com/anaacto
Ana Acto, nasceu a 5 de abril de 1979 em Tomar, Portugal. Abriu em 2018 nas redes sociais uma página de autora com o seu nome onde partilha a sua escrita em poesia, prosa poética e reflexões. Escreve-nos sobre a vida, e sobre o amor em todas as suas vertentes, romantismo, perda, esperança e sensualidade. Participante ativa em saraus e tertúlias poéticas e coautora em mais de vinte obras coletivas. Lançou em 2020 o seu primeiro livro de poesia, intitulado “NUA”. Para além do gosto pelas letras, tem diversas formações em terapias holísticas e alternativas.
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