Invisíveis

“Era mais fácil ser esse ser invisível neste mundo pequeno, que fingir ser real num outro mundo qualquer.

REVISTA VICEJAR – ATUALIDADE E COMPORTAMENTO



_____Recordo-me bem, aquele inverno do ano de dois mil e quinze. Fazia alguns meses que havia me voluntariado em um projeto em prol dos sem abrigo. Projeto esse, onde levávamos sopa quente, pão, frutas, roupas e agasalhos, e claro, um coração aberto disposto a amar e palavras de esperança quando nos desejassem ouvir.

_____É um mundo pequeno, cercado por esse mundo imenso em que vivemos. É particularmente pequeno aos olhos que enxergam em sentido contrário, buscando uma outra paisagem ou realidade. Mas é real, existe mesmo ali num dobrar de esquina, está ali na calçada do teatro onde vamos assistir à grande peça teatral da vida, ao lado dos monumentos de nossos heróis onde eternizamos aquela self, é mesmo ali.

_____Nesse pequeno mundo há: médicos, engenheiros, professores, pais, filhos, atores/atrizes, músicos, escritores, poetas, advogados e até juízes. Se pararmos para perceber é um pequeno mundo feito por gente "Grande". Grandes na construção de um mundo nosso, mas que em alguma altura da vida, perderam-se do caminho, mas continua a jornada na berma da estrada, mas como invisíveis.

_____Nestas noites frias, há muito calor humano e histórias de embalar. Um médico que sofria com dores abdominais não  possuía remédio para o aliviar. O filho esquecera dos pais, sofre de amnésia e tem crises epiléptica.

_____Um pai recorda o filho, que o abandonou na praça central com uma pequena mala de roupas e vinte tostões em trocos. Um professor de matemática, passa seus dias a fazer contas às cicatrizes da vida.

_____Um advogado diz, não se defender da vida que leva, mas também não acusa a ninguém. A atriz interpreta, o músico canta, o escritor rabisca num velho caderno, o poeta declama a vida em poesia, o juiz julga a si mesmo.

_____Tudo isso vi e ouvi, nestas muitas noites frias de inverno. Perguntei a alguns se desejavam voltar para o imenso mundo ao qual pertenciam? Diziam que não! Pois este é o mundo a que pertenciam verdadeiramente, e era mais fácil ser esse ser invisível neste pequeno mundo, que fingir ser real num outro mundo qualquer.  

_____– O inverno e a fome doem às vezes, mas não tanto quanto a crueldade de tentar provar uns aos outros que és real, que és importante e que deseja ser amado.

_____De todas as vezes que dali voltei para esse nosso imenso mundo, voltei mais rica do que alguma vez fui.

_____Grata pela força e poder de resiliência dessas "Grandes" vidas, real mas tão invisíveis.









 TEXTO: Flaviane Borges  
FACEBOOK: Depois-daqueles-dias 
Flaviane Borges Gomes, nascida aos 25 de setembro de 1981, em Dom Cavati, interior de Minas Gerais. Completou seus estudos na Escola Estadual Profa. Ilma de Lana Emerik Caldeira, em 1999. Despertou gosto pela escrita desde muito cedo, embora tenha um vasto material escrito, dentre poesias, frases filosóficas, textos e afins, o que fez por amor à escrita em seus momentos sós. Participou da Antologia "Arte em Poesia", pela Editora Sol. É autora da "Página depois daqueles dias", que leva o nome do seu primeiro livro a ser publicado em breve. Hoje luso-brasileira, reside em Portugal, onde continua sua jornada no mundo da escrita.
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