Os Olhos de Deus

“A maldade tem força, a miséria não, basta-se a si mesma no seu vazio e desalento. A miséria não assume outra forma que não seja ela própria.” 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA  ( Conto ) 



_____Mudara havia pouco tempo para a pequena cidade. Tinha sonhos que só o sonho alcança. Queria ver novos mundos, descobrir novos rostos e abarcar em si saberes e muitas, muitas recordações. Era jovem e a juventude é sempre o apelo maior ao desejo de liberdade e grandes aventuras. Por isso estudara para ser alguém, sempre crente da sua força de acumular vitórias. Só o conhecimento nos torna grandes, confessava a si mesma nos dias em que o sorriso parecia querer fugir-lhe. Para poder acreditar sempre e mais uma vez. Agora, finalmente, sentia-se grande. Até o “Dra.” era já título, como laço a enfeitar o nome. Aprendera muitas lições de cor para o conseguir agarrar.

_____A vaidade é um sentimento curioso. É exatamente do tamanho daquilo que a vida nos ensina.

_____Era dezembro. O frio enregelava a pele e fazia correr para o aconchego da lareira acesa, onde as paredes cantam a música com essa cor dos afetos que chamamos de lar. Paragem rápida na padaria que ficava no percurso e uma corrida para escapar à chuva miudinha, de um princípio de noite que começara a chorar. Ao sair, novamente os pés em sintonia a caminho do carro estacionado uns metros à frente.

_____Mas eis que o olhar pousa súbito sobre o escuro, debilmente alumiado debaixo da ponte próxima. Um contentor de metal com afável lume a arder, a pintar sombras num rosto solitário. O pobre homem sopra brandamente as mãos e esfrega-as uma na outra, como se, assim, as pudesse aquecer mais do que o próprio fogo.

_____Pela noite dentro, essa imagem de solidão ficou-lhe presa na alma. Vários foram os finais de dia em que voltou àquela padaria. Já não era o aroma do pão quente que a demorava no trajeto de regresso a casa. Agora ficava uns minutos dentro do carro, protegida do frio, a olhar o outro lado da rua. Aquele outro lado do seu mundo. A ganhar coragem.

_____Recordava as palavras de um amigo a garantir-lhe, certa vez, que a miséria assusta mais do que a maldade. Porque a maldade tem olhos que encantam e tem voz que seduz, dissera-lhe ele. A maldade tem força, a miséria não, basta-se a si mesma no seu vazio e desalento. A miséria não assume outra forma que não seja ela própria. E o susto antecipado de um medo em nós, muito antigo, bem escondido. Por isso lhe fugimos de cada vez que o olhar se confronta com ela.

_____Mas também alguém lhe dissera que se existem mundos que nos separam, haverá sempre presente um coração que nos une. Porventura a razão pela qual, nessa noite ainda mais gelada de dezembro, quando a chuva miudinha ameaçava voltar a cair, os passos não correram para o carro estacionado. Em vez disso, atravessou a estrada e parou debaixo da ponte. A hesitação a abrandar-lhe o respirar...  

_____A voz do rosto solitário fez-se, de repente, ouvir, sem que dele se levantassem os olhos escondidos pela névoa do crepitar do lume no velho contentor.

_____– Aproxime-se menina. Não lhe faço mal!

_____E continuou, sonora e firme:

_____– Sei que há já uns dias me observa do outro lado da rua. Vou dizer-lhe uma coisa: a vida é como o amor, sente falta de um olhar onde possa agasalhar-se. Quando apenas existe silêncio, todas as portas se trancam dentro de nós. Por isso, seja bem-vinda ao meu lar. Como pode ver, as minhas portas estão sempre abertas. Está uma noite fria! Posso oferecer-lhe um pouco da minha lareira?

_____O coração pareceu parar de bater-lhe dentro do peito, face a tão humilde convite. E a intuição avisou-a que seria ela, a “Dra.”, grande de conhecimentos, que mais uma vez iria aprender a lição. Desta vez, uma lição bem diferente.

_____Estendeu as mãos sobre aquele confortável quente capaz de fazer esquecer todas as dores do tempo. Procurou perceber o olhar do homem que lhe oferecia, assim, na mais íntima emoção, singela hospitalidade para festejar o contentamento da chegada dela. Só então, com pasmo e sobressalto interior, percebeu que ele era cego.

_____E, de novo, como quem murmura um segredo, o sorriso dele mostrou que lhe entendera o espanto e a surpresa.

_____– Sabe menina, não tenha pena. Perder tudo na vida significa que também se perde o medo. Afinal, quando estamos nus de alma e corpo inteiro, nada mais há a ser roubado. E depois, existem lembranças que preferimos manter escondidas dentro de nós, lembranças que preferimos não voltar a conhecer-lhes o rosto.

_____Nesse momento, ela conseguiu perceber o significado da afirmação que um dia lera na passagem rápida por um qualquer livro, sobre a existência de chãos que, de tão férteis que são, erva daninha nenhuma neles consegue fazer morada. Talvez essa fecunda terra invisível seja a força, em comunhão com uma doçura inabalável, que nascem de longa e sofrida viagem às entranhas da vida. E a capacidade única de ali permanecer. Como descobriu neste homem de rosto solitário.

_____Afinal, o coração também é algo curioso. Cabe na palma da nossa mão, mas dentro do seu tamanho, está exatamente tudo aquilo de que precisamos.

_____Antes de partir, questionara-o como conseguia compreender tanto sem conseguir ver nada. Ele apenas respondera com um rasgado e sincero sorriso na boca, gasta pelo tempo:

_____– Não são necessários olhos para sentir. E para ver... não preciso deles. Tenho os olhos de Deus.

_____Nessa noite, antes de regressar ao interior, agora consideravelmente frio, da sua casa, ela deixara ficar nas mãos daquele homem o saco do pão morno que comprara na padaria. Consigo, trouxera uma lição com sabor perpétuo: há pessoas assim, não precisam de olhos para ver o infinito.

 





 TEXTO: Paula Freire 

FACEBOOK: https://www.facebook.com/su.lima834 

Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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