REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____A noite era minha. Acendi a lareira e vesti-me a rigor como pede a ocasião. Pijama de flanela, robe, meias quentinhas e a minha mantinha.
_____O Livro de contos, da Sophia de Mello Breyner Andresen, que encontrara numa caixa na cave esquecido, chamava-me. Pois assim seja, peguei nele e esparramamo-nos os dois aconchegados no cadeirão.
_____Só o crepitar da madeira quebrava o silêncio, e me remetia à infância, quando minha avó, bem cedo acendia o lume, com sama dos pinheiros e pinhas. E me sentava num pequeno banco de madeira a vê-la, enquanto me entretia a soprar para o ar vendo meu bafo quente se envolver no frio, formando uma pequena nuvem à sua volta.
_____A meio da leitura soltei o livro, meio sonolenta do torpor que o calor conjugado com a leitura me provocava, e matutando no conto que acabara de ler.
_____E quando dei por mim, estava sentada na tua varanda a ouvir-te contar uma das tuas histórias. Já me a havias contado à alguns anos, e de vez em quando a recordava. Pedi-te mais pormenores, pois esta tinha um cariz especial, a tinhas vivenciado. E eu, porque gostaria de um dia a passar ao papel.
_____Já estavas doente. Mas nesse dia, o sol brilhou, e vieste sentar-te nas escadas da tua varanda, com tua irmã (minha mãe), comigo e com a avó. E começaste, nesse teu jeito teatral a contar-nos, como numa noite de tempestade, o carro onde ias se avariou. A noite estava escura como breu, chovia a cântaros e nem uma alma se via na rua.
_____E tu, crente, fechaste os olhos e pediste auxílio (às almas perdidas, pelas quais sempre rezavas, pedindo encaminhamento divino, aos anjos, e ao Pai criador) porque eras uma mulher de fé, e acreditavas...
_____E do nada, surgiu um homem de mala na mão, a perguntar se precisavam de ajuda. Passara ali por acaso, mecânico. Abriu o capo do carro, percebeu qual o problema, e o resolveu. E enquanto pensavas no quanto surreal era a situação, foi embora... tão misteriosamente como tinha aparecido.
_____Já não era a primeira vez que ta ouvia contar, e ficava sempre emocionada, não só esta, como tantas outras histórias, quando era menina. Mas esta, real. A tua fé, força, coragem e perseverança, eram capazes de converter o mais descrente dos homens.
_____Mas sabes o que mais me cativava? Era o modo como nos as contavas. Abrias grandes os teus olhos meigos quase negros, em suspende, enquanto gesticulavas abrindo os braços, dando corpo às palavras. Descrevendo pormenores e despertando-nos cada vez mais a curiosidade.
_____Depois desta, vieram outras. De lendas, mitos, das que “já meus avós contavam”, ou das que “ouvia-se por aí dizer...”, e a tarde foi passando, e eu escutava-te, guardando em mim cada palavra tua, cada gesto teu, o som da tua voz e os teus cabelos negros.
_____E tu... Tu já não estavas doente. E eu... Eu era de novo a menina, que te ouvia contar a história do anjo que salvou a criança em perigo numa ponte, ou do rei dos peixes, nesse teu modo doce e entusiástico.
_____Olho para a lareira enquanto te recordo e escrevo estas palavras. As lágrimas deslizam-me insuportáveis pelo rosto, à lembrança do teu, cheio de histórias, magia, ternura e sonhos. E o teu sorriso... Ah, tão leve e aberto como o de uma criança.
_____Tu, foste todo um conto. Foste autora e personagem. Actriz e espectadora, das mais belas histórias e memórias, com que hoje, todos te recordamos.
Com o meu amor...
À minha tia Irene (que nos deixou fisicamente a 5 de Dezembro de 2021)
TEXTO: Ana Acto
FACEBOOK: http://www.facebook.com/anaacto
Ana Acto, nasceu a 5 de abril de 1979 em Tomar, Portugal. Abriu em 2018 nas redes sociais uma página de autora com o seu nome onde partilha a sua escrita em poesia, prosa poética e reflexões. Escreve-nos sobre a vida, e sobre o amor em todas as suas vertentes, romantismo, perda, esperança e sensualidade. Participante ativa em saraus e tertúlias poéticas e coautora em mais de vinte obras coletivas. Lançou em 2020 o seu primeiro livro de poesia, intitulado “NUA”. Para além do gosto pelas letras, tem diversas formações em terapias holísticas e alternativas.
Comentários
Postar um comentário