Um Sentimento Para Além da Vida

“Foi contigo que aprendi a amar as árvores, as folhas, o brilho do sol, o som das águas, todos os seres.” 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 


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____Recordas-te? Deverias recordar-te... Eu nunca me esqueci. Carreguei as memórias na alma para além da vida. Talvez para que a lembrança da dor fosse apagada, talvez para que, enfim, a paz pudesse ajustar-se ao coração. Talvez para acreditar num outro caminho que não tivemos oportunidade de viver e que me traga de volta à criança livre e pura que cheguei a ser, antes de partires. Talvez ainda para te mostrar que continuarei sempre aqui. 

_____Vejo uma estrada de terra batida a prolongar-se até à curva da encosta e que começa a descer num declive que, entre tantos outros caminhos, conduz à colina que é janela para o mar. Aquele mar imenso onde naquela madrugada te vi partir sem que o soubesses. Para sempre. Porque não tiveste coragem para te despedires. Não tiveste coragem de me olhar nos olhos e dizer que terias que ir, que chegara o momento inesperado e nunca desejado de servir outro mundo maior, outras conquistas tão diferentes daquelas que me ensinaste com a pureza dos teus gestos e o brilho da alma que te tornava tão especial. 

_____Partiste com o peso da culpa, maior do que o teu próprio peso. Ainda sinto a dor imensa que se me afundou pelo coração dentro e o negro infinito de um futuro ausente de ti. A dor da separação abrupta. Assim te pareceu mais fácil para mim. Assim, sem lágrimas. O coração que não vê também não dói. E, no entanto, sabias como estavas enganado. Porque a dor acompanha-te até hoje e só a imagem da minha presença te sossega o espírito, te acalma os momentos difíceis. Foi desse modo que procuraste a força nos dias escuros que viveste depois. Acompanhado com a minha imagem e a confiança de que, quem sabe, no futuro o teu regresso viesse pedir o meu perdão. 

_____E ali estava eu, debruçada sobre o vazio e o olhar na vaga distância que se perdia no horizonte, a questionar-me na minha cabecinha de criança sobre o porquê. Por que é que o Deus que me ensinaste a amar através dos seres, da natureza que tocavas com as mãos e a alma, te tinha agora levado até sempre? Sinto ainda a aspereza das lágrimas silenciosas a descerem-me sobre o rosto. O silêncio interior, a dor cruel da solidão. 

_____Lembraste da nossa casa? Do lado direito da estrada a caminho da colina, a casa de pedra, amarela, os canteiros onde a mãe depositava todo o seu carinho, as árvores do lado esquerdo da parede debaixo das quais, por vezes, nos sentávamos a rir enquanto apontavas para o céu e dizias que era a obra-prima de Deus. E abraçavas-me com todo o calor. Sentia-te a minha rocha, a proteção de todos os males. 

_____Do outro lado da estrada, uma vedação e para lá dela um bosque. Um bosque frondoso com caminhos que se redescobriam a cada momento perante os nossos olhos. Percorremo-los tantas vezes e de todas elas encontrávamos sempre um segredo oculto. De cada vez, obrigavas a que a minha atenção recaísse sobre um pormenor novo, como um renascimento da natureza a cada visão. 

_____Tinhas essa magia dentro de ti e sabias transmiti-la como ninguém. Foi contigo que aprendi a amar as árvores, as folhas, o brilho do sol, o som das águas, todos os seres. Ainda guardo tão nitidamente aquela imagem: uma flor entre o verde, tu quase em silêncio, a apontar-me uma borboleta com as asas a tremerem levemente. E murmuraste: “Repara como é linda e majestosa, podia ser criança na sua simplicidade e inocência, rainha na sua beleza e deusa na sua força de ascensão pelos ares!”. 

_____Ensinavas-me cada segredo da vida que guardavas no coração como um tesouro encantado. E tudo eu absorvia como se adivinhasse que seria a tua herança no dia em que partisses. E via em ti o herói, o protetor dos caminhos que atravessaria. 

_____Muitas noites, saíamos de casa às escondidas e levavas-me pela mão por entre esses caminhos dos bosques. Ensinavas-me o brilho da lua entre as copas das árvores e das nuvens mais escuras. Dizias-me que a natureza à noite também é perfeita e sábia e que os seus mistérios mais ocultos são revelados nessas horas. Eu não sentia medo. 

_____Recordo-me do teu rosto sereno, cabelos e olhos negros. Recordo-me do meu rosto tranquilo ao teu lado. A sorrir em volta dos meus tão curtos anos de vida, mas com tanto já no interior de mim: o teu legado. Recordo-me do teu abraço apertado e do teu sorriso enquanto pronunciavas “és a minha pequenina, estarei sempre aqui, sempre que precisares e jamais deixarei que algum mal te aconteça”. A promessa que nunca pudeste cumprir. Que ainda hoje não consegues cumprir. 

_____Tudo o que aconteceu após a tua partida se me apagou do pensamento, exceto a dor. Não tivemos oportunidade de nos despedirmos desta caminhada. Talvez um dia seja o reencontro. O nosso. E o teu. 

_____Sabes? Às vezes, a incerteza também é sinónimo de esperança. 

 





 TEXTO: Paula Freire 

FACEBOOK: https://www.facebook.com/su.lima834 

Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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