Como uma Viajante de Sonhos

“Aqueles movimentos e sonoridades quentes, à luz do sol poente, enfeitiçavam-me o olhar de menina e ali me deixava encantar no sentir despreocupado de um infinito que me era ainda tão incompreensível.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 



_____Ter uma alma que se formou a partir não de uma, mas de várias sementes que, em algum momento, foram plantadas em diversos jardins do mundo, pode ser um privilégio. Pela vida, o germinar de sentimentos, abraçados a memórias tão variadas quanto a brisa dos ventos, torna-nos viajantes de sonhos. Nas mãos transportamos uma espécie de voo de esperança.

_____Seria esse o legado que a minha mãe de África pretenderia oferecer-me antes de, um dia, termos ambas seguido adiante por outras jornadas e peregrinações.

_____Recordo a Amélia, que cuidou de mim ainda em flor. A bisneta de um verdadeiro viajante de sonhos que, na altura, já havia partido para outras dimensões deixando aqui ficar o brilho negro dos olhos profundos e o sorriso branco, gigante, do rosto de Amélia.

_____Sentada ao seu colo, e ao som de um sotaque tão característico, ouvia-lhe as muitas histórias que recordava do bisavô, quem ela dizia ter sido um velho ancião de forte e corajoso coração banto, sabedor de muitas verdades que só os espíritos mais iluminados têm a honra de possuir dentro de si.

_____ “Temos qui contá estórias porque a verdade, às vezes, dói muito!”, aconselhava.

_____E acrescentava que as histórias fazem nascer em nós uma outra humanidade que  nos transforma em pessoas mais felizes. Por isso, o bisavô ensinara-lhe que, quando descobrimos sonhos ao olharmos para uma noite estrelada sobre os planaltos, experimentamos a alegria da vida noutros reinos distantes.

_____Penso que o que o velho ancião, que agora desconfio ter sido, porventura, um valoroso xamã, terá ensinado a Amélia quando era ainda criança e que ela queria transmitir-me também, era essa sabedoria de que nos fala a natureza na sua relação com algo superior.

_____Apesar de muito pequena, sentia que as histórias dos sonhos da minha mãe de África, ou do bisavô dela, me tranquilizavam o espírito rebelde da minha primeira infância. Contava-mas, principalmente, depois de dar solução às minhas aventuras mais afoitas e desculpas disparatadas que a faziam arregalar os olhos e colocar a cabeça entre as mãos para, logo a seguir, as sacudir em gestos largos pelo ar: “Chiii minina! Bassopa... Ni ta kuba! Suca, suca... É maningue canganhiça aqui!!!”.

_____A seguir, ia buscar um pequeno tambor de madeira que guardava num velho armário e nele fazia ressoar ritmado batuque, enquanto entoava estranho cântico com o qual, imagino, pretendia enviar para longe abominados espíritos que me pudessem perturbar.

_____Outras vezes, garantia a minha presença junto dela enquanto as suas raízes xamânicas nos envolviam num perfumado banho de ervas com aroma adocicado, numa espécie de ritual de purificação.

_____Depois das histórias, invariavelmente, seguia-se o nosso ansiado passeio do dia. O olhar doce dela contemplava-me de alto a baixo e rematava sempre com orgulho, enquanto me prendia os cabelos soltos com o ganchinho em forma de flor: “Ya, xonguila! Podemos ir.”.

_____E íamos de mãos dadas. O corpo de Amélia ainda roliço, debaixo das capulanas coloridas e os cabelos já esbranquiçados escondidos por lenços estampados de várias cores, não lhe denunciavam a idade.

_____Por vezes, seguíamos a pé pelas avenidas enfeitadas de acácias que pareciam pender dos telhados do céu, ao encontro do pôr-do-sol e do ranger das tábuas de madeira, sob os pés e os corpos dançantes dos homens e mulheres, a libertarem o suor da alma e as vozes alegres ao som da marrabenta. Aqueles movimentos e sonoridades quentes, à luz do sol poente, enfeitiçavam-me o olhar de menina e ali me deixava encantar no sentir despreocupado de um infinito que me era ainda tão incompreensível.

_____Outras vezes, Amélia apertava-me a mão e fazia-me correr, às gargalhadas, para apanharmos o autocarro. “Anda minina, machimbombo foge, não espera, não!”, gritava, em tom estridente.

_____Viajávamos até ao bazar da cidade. Pelo caminho, guardo a sensação do calor húmido que me corria pelo rosto. No ar, o cheiro do caril acabado de cozinhar, do milho torrado, dos cajus assados e o aroma fresco das catembes, trazido pela distância das ruas onde as palmeiras faziam sombra.

_____Lá chegadas, ouvia a voz divertida da Amélia, “Hawena ntombi! I malè muni?”. E, por entre todo aquele ambiente tropical, nunca deixava de haver à minha espera o sabor inesquecível de uma manga ou papaia maduras, um sumarento e refrescante ananás ou maracujá, ou a textura macia dos abacates que faziam as minhas delícias.

_____Como um instante entre a terra e o céu. Assim é uma das mais bonitas formas, que encontro, de recordar as minhas origens...

_____Sou privilegiada por ter vivido os meus primeiros anos de vida ao lado de uma alma tão pura como a de Amélia, que soube, com a sua humilde sabedoria, tornar-me igualmente uma viajante de sonhos.

_____Nesses tempos, fugindo constantemente à desesperança e fúria dos homens, Amélia, a minha mãe de África para quem fui a única filha que teve, trouxe-me os ensinamentos do seu bisavô.

_____Um bisavô que não foi apenas um simples narrador de grandes histórias, mas terá sido também um poeta, um músico da vida que, na sua ancestral sapiência, descobrira, lera e resolvera alguns dos mais profundos enigmas do mundo.

_____Com ele, Amélia aprendera que não deveria existir distinção entre os homens e a natureza. Afinal, se somos uma parte de Deus, então os homens e a natureza abraçam em si o mesmo coração. E, por essa razão, todos os homens deveriam empenhar-se em falar uma língua da mesma cor.

_____Porque, “Quem mata os sonhos não é Deus, minina... são os homens.”.

_____Hoje, com uma emoção que não descubro em palavras e uma gratidão imensa por ter nascido naquele magnífico continente e te ter tido junto a mim, Amélia, quero dizer-te, seja qual for o ponto do firmamento em que te encontres neste exato minuto e seja qual for a matéria de que agora sejas feita:

_____MamaninitlanguelileKanimambo.


 TEXTO: Paula Freire 

FACEBOOK: https://www.facebook.com/su.lima834 

Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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