A derradeira esperança

“As rajadas agigantavam-se à medida que descíamos a serra, pareciam desconfiar do meu propósito e conhecer a missão. Firmes, minhas mãos retornaram às rédeas.” 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica / Conto )


 

_____— Nossa, se eu não tivesse passando aqui perto, ia ficar ensopado.

Seu Libâneo sorriu:

_____— Essa chuva estava rondando desde cedo, moço.

_____— Bem que a mãe avisou: vai duma vez, se não o toró pega você no caminho. Mas minha teimosia é das grandes, enrolei... pelo menos, deu tempo de entregar os doces e o rocambole que a freguesa encomendou.

_____Outra trovoada ribombou. Subitamente, a tarde se fez noite.

_____— Já tô imaginando a mãe pedindo pra Santa Bárbara me proteger: ela tem um medo danado de tempestade.

_____— O moço quer ouvir uma história?

Deitei a bicicleta na plataforma, sentei ao seu lado. Se o leitor aprecia histórias, verídicas ou inventadas, não deixe de procurar Seu Libâneo, que passa os dias ali, no banco da antiga estação, a recontar reminiscências dos tempos da Rede.

_____A enxurrada encobriu os trilhos. O velho maquinista empertigou-se, desfiou a seguinte história:

_____A ventania levantava poeira na estrada, emaranhava meus cabelos e as crinas de Raio. Cerrei mais os olhos. Folhas, gravetos rodopiavam pelo ar e as partículas de pó que cobriam a estrada pareciam vir doutro mundo para turvar meu pensamento e minar minhas forças. 

_____As palavras do Ancião ecoaram em meu peito novamente: “Não esmoreça, garoto! Enfrente o que atravessar seu caminho. Resista, persista. Você é nossa última esperança, vá!” Instintivamente toquei o alforje. O escrínio sacolejava ali dentro.

_____Sem trégua, o vento açoitava. As rajadas agigantavam-se à medida que descíamos a serra, pareciam desconfiar do meu propósito e conhecer a missão. Firmes, minhas mãos retornaram às rédeas.

_____Seja valente, disseram-me as mulheres na aldeia. Em torno da fogueira, as crianças encorajaram-me, depositaram em mim suas derradeiras esperanças. Vi medo, angústia e desespero vincados naqueles rostos tão familiares e, naquele instante, compreendi o peso do meu dever. Ávido, busquei o rosto de Rosalinda que, agarrada ao braço da mãe, fitava-me com um brilho diferente. Em silêncio, dizia: acredito em você. Encorajado, agarrei o alforje, dali por diante seria seu herói, concluí.

_____Com o cajado, o Ancião apontou a mata. Acho, lera meus pensamentos. Assenti com a cabeça: chegara o momento. Dei outro nó no cordão. Preso no calção, o alforje roçava-me a coxa. Montei. Raio com certeza compreendera as palavras do Ancião, cada troca de olhar entre as aldeãs; conhecia, pois, a importância da missão. Esporeei. Partimos.

_____Se me vissem naquele instante, papai e os outros homens da aldeia sentiriam orgulho: carregava comigo a salvação ou, pelo menos, a derradeira esperança do nosso povo. Porém, levados pela guerra para as bandas do longe, será que teriam tempo para se lembrar de seus filhos e esposas, da aldeia e dos roçados? Raio bufou, chamando minha atenção: eu me deixava seduzir pelos devaneios... Devaneios minam as energias do corpo e da alma, papai dissera certa vez. Grato, acariciei meu amigo. Encaramos a íngreme descida, cruzamos as capoeiras às margens da estrada ainda escura. O sol teimava em surgir naquela alvorada plúmbea. O vento, contudo, parecia ganhar ímpeto a cada trote.

_____Súbito, um estrondo. O inconfundível relincho de alerta. Raio saltou o enorme tronco que acabara de tombar à frente. Afaguei-o, novamente agradecido. Destemido, acelerou. Cavalgamos horas e horas, olhos fixos no horizonte. Lá no sopé da serra, como um farol, as areias da praia nos impeliam a seguir. Em nosso encalço, como um inimigo, o tempo. O Ancião sempre dizia: é da essência do tempo jogar contra as criaturas vivas.

_____Raio reduziu o galope, estacou, indeciso se devia atravessar a pinguela. A madeira rangia, ameaçadora, refém dos ventos. Do outro lado da margem, um cão ferido nos encarou. Com a cabeça, indicou as águas cristalinas. Confiante, Raio desceu o barranco, atento à terra fina e ao cascalho. Saltando entre as rochas nuas, atravessamos o rio que, a despeito da cruel ventania, estava plácido. Estranhei. Contudo, sem tempo e disposição para conjecturas, apenas acenei para o cão. Durante a travessia mantive uma das mãos firme no alforje: em hipótese alguma poderia perder o escrínio.

_____O cão nos seguiu até certo trecho. Depois, prostrou-se à sombra de uma mangueira, ficou a lamber as feridas. Continuamos. No vale, os ecos do vento. O pior finalmente ficara para trás, pensei. Sem reduzir a marcha, embora aparentasse cansaço, Raio seguia.

_____Passamos por algumas choupanas marcadas pela guerra. Rastros de dor e morte misturavam-se ao mato estorricado. Indiferentes à nossa chegada, urubus se refestelavam sobre os restos de uma mula. Persignei-me diante das cruzinhas de gravetos fincadas na terra ainda fofa. No telhado chamuscado, um gato lamentava a solidão.

_____Apeei. Raio me seguiu. Curioso, e ao mesmo tempo temeroso, parei à porta da casa. Roupas rasgadas no catre, potes de cerâmica quebrados. Largada ao lado do fogão de lenha, uma boneca de pano me encarou; seus olhos de retrós pareciam rogar: não perca um segundo, garoto, vá! De novo, as palavras do Ancião romperam em minha mente.

_____Voltei ao terreiro. A brisa jogou no meu rosto o cheiro nauseante da carne podre. Assustei-me: Raio não estava mais ali. O gato continuava se lamentando. Um dos urubus voou, rodopiou sobre os telhados, os outros continuaram a destrinchar a mula. Atordoado, parei no meio da vila. Súbito, um relincho. Virei-me: ao lado do poço, Raio bebia da água que restara em um velho balde. Aproximei-me, afaguei-o, partimos em trote apressado.

_____Às margens do rio, frutas careciam colheita. Senti o estômago reivindicar parte daquele espólio, todavia, me contive. A brisa renovou-me as forças, já não trazia o cheiro da morte. Novamente na estrada, galopamos incontinente até avistar a imensidão do mar. Com os olhos ansiosos, percorri a orla, avistei um barco. A bandeira tremulante não deixava dúvidas: chegáramos no prazo. Mais uma vez, sem desanimar, Raio avançou.

_____Da embarcação, ecoaram gritos e assovios. Um escaler veio ao meu encontro. Deixei Raio descansando sob um coqueiro, corri, saltei as primeiras ondas, nadei. A poeira, enfim, se desentranhava das minhas roupas, do meu corpo suado e cansado. O alforje roçava-me as coxas mas, como o Ancião garantira que o escrínio estava hermeticamente fechado, não me preocupei. Os homens ajudaram-me a subir, remaram de volta ao barco.

_____Da amurada, um sujeito barbudo e troncudo, que julguei ser o capitão, fitava-me com a luneta. Mal embarquei, arrancou-me o alforje. O cadarço se rompeu, feriu-me a pele. Não importei, afinal, concluíra minha missão.

_____Feito uma fera, o capitão rasgou o alforje, grunhiu com satisfação. Em torno, a tripulação – homens de aparência exausta e grumetes esfarrapados – o observava. Ele ergueu o braço, mostrou-nos a relíquia. Um dourado maravilhoso irradiou e, diante da luminosidade ofuscante, semicerramos os olhos. Lembrei-me da frase de um padre dos tempos antigos que o Ancião sempre citava: luz que, de tão forte, ofusca e fascina.

_____Ao meu lado, um garoto fungou, trepou no barril, gritou hip hip hurra. Um coro entusiasmado o acompanhou. Sonoros brados de vitória ecoaram pelo convés, assustaram as gaivotas que rondavam a embarcação. Na praia, Raio relinchou, confirmando o que eu supunha: ao regressar, seria recebido como um herói. A vitória, enfim, estava garantida. Mirei a serra, tive a impressão de ver o rosto de Rosalinda a me fitar, enamorado.

_____— É, a chuva passou, moço.

_____Seu Libâneo apontou o arco-íris. Assenti, montei na bicicleta.

_____— Ó, diz à sua mãe que pra semana vou encomendar umas empadinhas.

_____Desci a rampa da plataforma, disparado feito o garoto da história: a mãe com certeza me esperava para eu entregar o bolo da outra freguesa. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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