Crônica filial

"Naquela mesa, no assento da cabeceira, avistei você. Um homem de corpo magro, abatido pela alta glicemia, as têmporas a exibir fios grisalhos."

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )


 

_____Pai, ainda lembro do dia em que você foi embora de casa. Sim, eu ainda me lembro, embora esta lembrança, já esteja um pouco embaçada em minha mente, feito chuviscos na janela em noites úmidas.

_____Pai, você não saiu para comprar cigarros ou cervejas. Você se foi porque talvez, tua casa já não significasse o tanto daquilo que precisavas para ser feliz. É pai, você procurava o mundo e suas tentações. A vida é uma aventura, fato que tu vivenciaste aos treze anos de idade, quando o senhor já era da rua, das esquinas, do vazio e da tua própria solidão.

_____Mas pai, veja... Você também me deixou só e no ápice da minha adolescência, eu te vi partir. Sem ao menos testemunhar teus retalhos, como pegadas, para eu te seguir. Neste meu desamparo, pensava em você, nas tuas escolhas e também nos teus medos. Porém pai, na tua decisão, caberia apenas o voltar. E sabe-se que para todo retorno, é exigido o arrependimento. Para que se brote o perdão e floresça o amor do lado esquerdo do peito.

_____É verdade, pai! Esperei por você durante cinco natais. Foram anos de ansiedade. E devo dizer, que teus telefonemas não me emocionavam. Eram secos, frios, tua voz abafada e entrecortada não ecoava dentro de mim. Meu desejo mais íntimo era de desligar e te fazer sofrer.

_____Ah, pai! Mas houve um dia que você voltou, porque a cama em que dormias, não era quente e muito menos macia. Você voltou, porque sabias da força de um sentimento chamado de compaixão.

_____Naquela mesa, no assento da cabeceira, avistei você. Um homem de corpo magro, abatido pela alta glicemia, as têmporas a exibir fios grisalhos. Sim, eles sinalizavam que o tempo a tudo constrói e reconstrói.

_____Pai, não me recordo de nossas primeiras palavras. Quem sabe, o silêncio tenha sido nosso interlocutor. Hoje, na velhice que te ampara, percebo: você está aqui, com suas manias e rabugices, certezas e dúvidas. Estamos aqui, enlaçados no instante, que ainda não se cansou de nós. 


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade. 

             
                       

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