_____Tanto se fala hoje do despertar ou resgatar a nossa criança interior. Afinal, é essa parte de nós que nos alimenta a espontaneidade, alegria, criatividade, intuição... a leveza com que encaramos a vida. E nos é tão difícil a mantermos, quando constantemente sujeitos a circunstâncias que nos levam a reprimi-la.
_____Digo-vos isto, porque a minha andava perdida, e aos poucos a tenho vindo a resgatar.
_____Existem tantas pequenas coisas que podemos fazer para a trazer de volta. É como fazer uma viagem ao passado, revivendo e experienciando de novo o que nos fazia felizes.
_____Sabores, pessoas, locais, músicas, aromas... tudo é válido, e em tudo nos reencontramos.
_____Um destes dias, pensei em sair para fazer uma breve caminhada com uma amiga, e, ao olhar o roupeiro, em vez de roupa desportiva, decidi vestir uns simples calções de ganga e uma blusa rosa. Ao pegar nuns ténis, vi num canto, os meus “ALL STARS”, que meu pai me oferecera há trinta anos atrás, sim, trinta anos, e raramente os uso, para os estimar (e pelas memórias que me trazem) daí estarem seminovos. Decidi calçá-los, e nesse momento, retrocedi no tempo. Era de novo a adolescente que tinha, numa rara saída, ido com o pai às compras, e este lhe oferecera algo, que para ela, viria a ter um valor incalculável... (que saudades meu pai...).
_____Ao procurar a chave do carro, “tropecei” no batom cor de rosa, e pensei “Será demais? E porque seria! pus um pouco, e ao olhar-me no espelho retrovisor, sorri. Senti-me como não sentia há muito, e tão simples...
_____Liguei o rádio, sintonizava a M80, minha rádio de eleição. Começava a tocar a “Even is a place on earth” de Belinda Carlisle, e foi a cereja no topo do bolo, levantei o som, soltei a voz, e nesse momento fiz uma viagem no tempo.
_____Noutra dessas “viagens” fui a Tomar, minha terra natal, passar o fim de semana com a família à casa da minha avó, e disse tudo, não disse? Casa da avó...
_____Ali sim, retrocedo imenso, não ao ventre quente de minha mãe, mas quase, ao meu ninho. Tudo ali me faz renascer, reviver, resgatar, o que seja, a menina que fui e ainda vive em mim.
_____Cada recanto, cada pormenor me traz doces lembranças. Olho para as janelas, com suas cortinas brancas rendadas, de onde espreitava o mundo e o sonhava. Para as paredes caiadas, o corredor de tábuas de madeira pregadas, tantas vezes esfregado de joelhos com brio, embelezado com uma primorosa passadeira vermelha, ah! E nela desfilava...
_____No teto, o antigo candeeiro de latão, com flores delicadamente desenhadas na lamparina, e sempre esteve ali, mas só agora, realmente o vi, singular, iluminando todo o espaço, fosse ele um magnânimo candelabro de cristal, e o amei, só por isso.
_____Até a simples maçaneta rendilhada da porta, ou o cavalo de louça (que vos juro, acredito ter nascido ali) me trazem memórias. Risos, pés descalços na terra, o cheiro de mosto no lagar do vinho, o crepitar da caruma a atear o lume pela manhã... ah! Tudo me leva de volta aos braços de minha mãe.
_____Ao Domingo, minha avó, religiosamente, fazia a sua canja de galinha. Uma tradição inalterável que meu avô adorava... (e que saudades tua, avô...). Quando ele ia à horta, por vezes levava-me junto com meu irmão, e ao chegarmos perto de um pequeno riacho, olhava-me... (aquele grande homem, em tantos sentidos) sabia o que eu queria, e por dizia-me “canta aqui” apontando para a sua bochecha, sorrindo, me pedindo um beijo. E eu, ansiosa, assim o fazia.
_____E como recompensa, pegava-me ao colo e levava-me às suas cavalitas, e o meu mundo, era perfeito... Minha avó, continuou a fazer a sua canja de galinha, mesmo depois de ele partir.
_____Agora dorme só. Deito-me a seu lado, os lençóis cheiram a lavado, a colcha branca de renda adorna a cama (avó...) abraço-a, ela dá-me uma festa como se ainda fosse uma menina, a sua menina (e sou), e diz-me carinhosamente “minha passarolêta”, e sinto o peito a transbordar de amor, e medo...
_____Fecho os olhos, recordo-a à lareira, a fazer os filhoses na consoada, as couves e o bacalhau, e sinto o cheiro do lume, dos fritos, do café que repousa na cafeteira junto às cinzas para se manter quente ao longo da noite.
_____Recordo as viagens de regresso, feitas pela estrada nacional, levando horas. Minha avó aconchegava-nos com um cobertor, e enchia o carro com tudo o que podia, vinho, batatas, fruta, azeite, e muito, muito amor...
_____O fim de semana acaba, volto a casa. De novo trouxe, melancias, abafado, feijão..., mas agora não só de meus avós, mas também de seus filhos e netos, que como eles, trazem as mãos abertas.
_____Os tempos mudaram, já faz os filhoses antes da consoada, em fogão a gás. O tradicional bacalhau cozido, praticamente foi substituído por tabuleiros de natas no forno.
_____Mas o amor, esse perdura entre passado, presente e futuro.
_____E para mim resgatar a menina é tão simples, basta pedir...
_____Avó? Faz-me canja de galinha...
TEXTO: Ana Acto
FACEBOOK: http://www.facebook.com/anaacto
Ana Acto, nasceu a 5 de abril de 1979 em Tomar, Portugal. Abriu em 2018 nas redes sociais uma página de autora com o seu nome onde partilha a sua escrita em poesia, prosa poética e reflexões. Escreve-nos sobre a vida, e sobre o amor em todas as suas vertentes, romantismo, perda, esperança e sensualidade. Participante ativa em saraus e tertúlias poéticas e coautora em mais de vinte obras coletivas. Lançou em 2020 o seu primeiro livro de poesia, intitulado “NUA”. Para além do gosto pelas letras, tem diversas formações em terapias holísticas e alternativas.
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