Óculos novos

“O atendente coloca mais armações na mesa. ‘Fica à vontade’, diz, e vai ao cômodo contíguo buscar meus óculos.”


REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 


 

_____Atravesso a rua. Por um triz, uma bicicleta disgramada não me leva... seu bosta, grito. Impassível, o imbecil segue pedalando. Ele sabe que vai pela contramão e, a julgar pelo sorriso debochado, sente prazer em ir assim: age, pois, dolosamente como dizia meu professor de Penal.

_____Xingo de novo. Algumas criaturas riem... sempre tem gente rindo do infortúnio alheio: eu sei, porque também já ri de muitos. Mas, como não gosto de virar o centro das atenções, sigo meu caminho.

_____Um mendigo, encostado na vitrine da ótica, rói um pão seco. Entro. O atendente me cumprimenta com a cabeça, continua lendo a receita da senhora à sua frente.

_____— O doutor queria que eu fosse noutra ótica, sabe. Até falou que lá eu ia ganhar um desconto bom, acho que eles têm convênio com a clínica dele. Aí falei: o senhor me desculpa, mas desde novinha só compro óculos na ótica do seu Gerinaldo.

_____O atendente assente, certamente pensa o mesmo que eu: faz tempo.

_____Observo a foto desbotada na parede: de terno e gravata, seu Gerinaldo esboça um sorriso sob o enorme bigode. Carece de um paninho para tirar a poeira da moldura, penso.

_____A dona prossegue:

_____— Meu primeiro óculos foi comprado com seu Gerinaldo. Na época eu tinha uns oito, nove anos... A ótica nem era aqui, funcionava num sobrado em frente à praça... ih, vocês nem eram nascidos naquele tempo.

_____ “Vocês”... engraçado, de repente, me incluiu na conversa.

_____O atendente abre o armarinho, pede a ela para escolher o modelo da armação. A dona insiste:

_____— Pena que vocês não conheceram seu Gerinaldo... quanta gentileza, que atenção com a freguesia! No dia que comprei meu primeiro óculos, me deu balas de coco. Eu nunca mais esqueci daquelas balas, tão macias... ficavam numa lata, e nessa lata tinha pintado um homem de terno numa bicicleta com a roda da frente enorme...

_____O atendente sorri com o canto da boca. Eu interrompo o que, imagino, se tornará um caudal de saudosismos:

_____— Lembro-me do seu Gerinaldo, sim. Mas na época que passei a comprar meus óculos, ou melhor, que meus pais me traziam para comprar os óculos, ele já não atendia a clientela. Dois funcionários atendiam, seu Gerinaldo passava o dia em uma poltrona ali, atrás do balcão, só fiscalizando o caixa porque, como dizia meu pai: disso ele não abria mão.

_____Novamente sentada, a dona se queixa:

_____— Ai, minha pressão tá baixa desde cedo. E minhas varizes tão me matando hoje.

_____O atendente coloca mais armações na mesa. “Fica à vontade”, diz, e vai ao cômodo contíguo buscar meus óculos. A porta, ao estilo daquelas dos filmes de faroeste, vai e vem. A dona olha as armações, indecisa como a menina que só pode levar uma boneca da loja. Ainda encostado na vitrine, o mendigo rói o pão.

_____— Esse calorão também não ajuda. Faz uma semana estou me sentindo meio bamba. Marquei consulta com meu médico para amanhã. Desde que peguei covid nunca mais meu organismo foi o mesmo, sabe.

Diante do espelho, experimento os óculos novos:

_____— Ficou bom. Estou cortando uma volta para assistir filme com aquelas lentes multifocais que comprei mês passado. Se eu sento no sofá, tenho que tombar a cabeça feito um boi cansado para enxergar direito; se deito, preciso colocar os óculos na ponta do nariz porque, do contrário, a imagem embaça.

_____— É incômodo mesmo, mas com o tempo você acostuma. As minhas lentes também são assim. A gente tem que procurar o ângulo, colocar o travesseiro mais alto...

_____Com uma armação verde na mão, a dona interrompe o atendente:

_____— Ó, vou falar uma coisa: evita ver televisão deitado no sofá. Força a cervical, dá um problemão na coluna... eu sei, porque sofro com isso.

_____Eu a ignoro: não tenho paciência para hipocondríacos.

_____— Rapaz, achar o tal ângulo é que é complicado... por isso encomendei estes óculos só para longe. Cansei de ficar com aqueles óculos na ponta do nariz, fico parecendo uma velha coroca.

_____O atendente tenta conter o riso, vira-se para a prateleira dos Ray Ban.  Séria, a dona me fita:

_____— Vai por mim, moço, não assiste televisão deitado. Destrói a coluna, e ficar muito tempo parado dá problema de circulação. E causa tontura porque a cabeça fica sem oxigenação... eu acho que desenvolvi labirintite porque passava horas deitada, sabe.

_____— Glória! Aleluia! Viva, viva!

_____Espantados, os três nos viramos. O mendigo, de braços levantados, saúda qualquer coisa que parece vir do céu. Aproveito a ocasião, tiro o dinheiro do bolso (desde que entrei aqui temia que o mendigo fosse um ladrão disfarçado). A dona, com uma armação cor-de-rosa, filosofa: a demência é obscena.

_____O atendente pergunta se quero a nota fiscal, pego depois eu digo, já na porta. Passo pelo mendigo: ainda de braços estendidos e olhos vidrados, parece enxergar mais que eu com meus óculos novos.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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