"Lá em cima vão fazer uma confraternização no fim do expediente, cada um vai trazer um negocinho pra comer..."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____Dezesseis de dezembro: último dia do ano, antes de entramos no tão aguardado recesso. Preparo a mesa para iniciar o expediente, torcendo para que não apareçam liminares e outras urgências. Em dias assim, sempre lembro a tabuleta na lojinha de xerox da faculdade: “urgente é o que não foi providenciado em tempo oportuno”. Na playlist, Zé Ramalho; no peito, a vontade de enterrar o pé na areia, ficar só apreciando o ondular dos biquínis pra lá e pra cá.
_____A porta abre. Entra Neildes, a estagiária, cabelo escovado, no vestido uma mancha enorme entre a cintura e a coxa. “Cês não imaginam o que aconteceu comigo!” Afora a minha pessoa, há na secretaria Dircilo, um companheiro de burocracia, e Manu, o/a estagiário/a (bolas, nunca sei como me referir à sua pessoa). Feito nadadores sincronizados, paramos, olhamos a recém-chegada. Intrigados, meus olhos saltam de seu rosto para a mancha.
_____– Eu vim de carona com uma terceirizada lá do quinto andar, sabe. Quando entrei no carro, ela me pediu pra segurar um pudim... Lá em cima vão fazer uma confraternização no fim do expediente, cada um vai trazer um negocinho pra comer, e ela ficou de trazer o pudim... Então, a gente vinha conversando, e ouvindo Jorge e Mateus, aí, de repente, um moço doido enfiou a moto na frente da gente. Ela freou, eu tava distraída, o pudim rolou e a calda entornou quase toda em mim. Ó só, o estado do meu vestido. Como vou trabalhar assim?
_____Dircilo encara Neildes e, à lá Sr. Spock, ergue a sobrancelha. Manu se solidariza com a infeliz, sugere passar não-sei-o-quê “pra não manchar o vestido”. Acho graça e, como não sou hipócrita, rio. Um riso debochado, confesso. Neildes me encara, a mão ainda na maçaneta. “Me infernizou o ano todo, agora o castigo veio”, penso com satisfação. Volto ao computador, acesso a caixa de e-mail.
_____O telefone toca, Dircilo vai atender. Neildes, enfim, larga a maçaneta, coloca a bolsa no escaninho:
_____– Bi, sabe quem começou a me seguir no Insta? Cê não adivinha... O doutor.
_____– Aquele bofe da academia? – Manu pergunta, aflito de curiosidade.
_____– Ele mesmo. Viu meus stories todos, curtiu umas fotos minhas. Deve tá interessado, né?
_____– Tô passada, miga.
_____– Vi que o doutor curtiu, mas não comentou nada. Aí postei outro story, dei um tempinho e, quando foi quase meia noite, comecei a seguir ele de volta.
_____– Arrasou! E ele, posta foto daquelas coxas mara?
_____Suspendo a leitura de um e-mail, me perguntando como Manu conhece as coxas do tal doutor. Dircilo começa a se impacientar ao telefone, suas narinas fremem, não sei se é com a pessoa do outro lado da linha ou se com essas espevitadas que continuam conversando.
_____– Posta tudo, bi. Foto malhando, correndo na avenida, no funcional. Até foto de sunga, um sungão estampado, ele postou. Cê precisa ver.
_____– Não dá. O insta dele é privado.
_____– Ele é todo sarado. Mas, também, malha demais. Pra cê ter uma ideia, eu chego na academia umas oito, ele já tá lá. Vou embora depois das dez, ele continua. Lá na academia a gente quase não se fala. O doutor é muito centrado nos exercícios. E agora é meu seguidor. Tô tão feliz, bi!
_____– Cê tá é muito chique.
_____Feito o cachorro Mutley, resmungo: grandes merdas ser seguida pelo “doutor”. Aumento o som. “Mãe, guarde esses revólveres pra mim/ com eles nunca mais vou atirar”.
_____Dircilo fala mais alto no telefone, algo sobre um alvará que “está pronto desde segunda, só falta o juiz assinar... aí o senhor reclama com ele, não comigo... ok, um feliz natal pro senhor também.” Olho seus cabelos, cada dia mais brancos e mais ralos. Outra vez juro para mim mesmo: vou cair fora disso aqui, não quero ficar assim.
_____Neildes, ainda plantada no meio da secretaria, alisa o vestido como se assim a mancha fosse desaparecer.
_____– Ele separou da mulher, cê tá sabendo?
_____– Ai, que tudo, miga! Promotor, bombadinho, tatuado, separado e sem filho... só digo uma coisa: se joga!
_____As estagiárias riem. Com o rabo do olho, noto Dircilo coçando o cocuruto. Como eu, anda farto dessa bobajada. Contudo, ao contrário de mim, que às vezes explodo e falo umas verdades para essa gente, Dircilo se mantém calado. Só perde as estribeiras, mesmo, com os advogados que telefonam para cá, “os urubus e as urubuas” como ele os chama.
_____O chefe entra, a bíblia debaixo do braço. Desde a pandemia deu para andar com “A Palavra”, como ele diz, pra cima e pra baixo e, vira e mexe, desembesta a recitar passagens do Apocalipse.
_____As assanhadas saem, rindo e cochichando. O vento bate a porta. O chefe senta-se na ponta da cadeira, empertigado, o semblante fechado; abre a bíblia. Pego meu cigarro e, em dueto com o Zé, saio cantando: “Bate bate bate na porta do céu”.
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