REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____Nos últimos dias, durante os intervalos da novela, tem passado a propaganda do ENADE. Cada vez que a vejo, recordo-me daquele domingo ensolarado quando fui a Viçosa fazer a avaliação do governo. Lembro-me também que, nas semanas anteriores, colegas propuseram boicotar o exame. Contudo, uma vez que não podiam deixar de comparecer (diziam na faculdade que os ausentes ficariam impedidos de colar grau), os rebeldes sem-causa inventaram de entregar as questões em branco.
_____Não me recordo os motivos para o tal boicote, certamente alguma questão ideológica (há muitas questões ideológicas no campus). Mas, trago talhados na memória as discussões, os bate-bocas e os sururus promovidos pelos tais rebeldes que, a todo custo, tentavam convencer os demais a aderir à sua campanha.
_____ “Não vou aderir, não é de meu feitio esse tipo de coisa”, disse a um chato que tentava angariar meu apoio. Lambuzei minha coxinha de catchup, o carinha insistiu; comentei sobre as estrelas e que estava de olho no pastel assado que, da estufa do balcão, me seduzia. Ele sorriu, o sorriso dos desistentes, foi para outra mesa. “Vai doutrinar noutro terreiro”, resmunguei, abrindo minha lata de Coca.
_____Então, como eu dizia, naquele domingo peguei cedo o Unida. Desembarquei na rodoviária. As plataformas vazias de outros ônibus, meia dúzia de gatos-pingados esperavam-me descer para embarcarem. Para Teixeiras, talvez Ponte Nova, destino final dessa carroça, pensei, sentindo as costas reclamarem o desconforto da poltrona.
_____Confiando na informação que um colega me dera na antevéspera – “fica depois da igreja, perto da praça, não tem erro” – tomei o rumo da escola. As ruas desertas, os bares e as lojas, fechados. Realmente, o domingo, faça sol ou chuva, é um péssimo dia para se pedir informação. Quando se encontra alguém na rua, ou está bêbado ou vaga alienado arrastando o viver... Hoje, com os avanços tecnológicos (puxa, agora me senti o professor Molica quando lecionava sobre os avanços tecnológicos que, nos séculos XV e XVI, possibilitaram o pioneirismo português nas Grandes Navegações) achar um local de prova é mais fácil: o Google maps, o GPS, o Street View nos guiam, para lá e para cá, às vezes sem erro. Mas, narro aqui fatos do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, em que ter conta no Orkut significava ser moderninho.
_____Pois bem. Andei, andei, passei por portas metálicas cerradas, por um vira-lata que lambia a perna ferida e por pombas que se atracavam em torno de um pacote rasgado de pipoca. Vi um ajuntamento na porta de uma escola: “é aqui”, decidiu meu lado sherlockiano. Confirmei minha dedução com um bicho-grilo que fumava encostado no muro. Atravessei o pátio, uma senhora com a vassoura na mão me apontou a sala 25.
_____Alguns colegas, de fato, entregaram os gabaritos e o caderno de prova em poucos minutos. Eu e muitos outros (a sensatez, enfim, vencera) permanecemos um bom tempo debruçados nas questões, lendo, relendo, matutando. Mesmo porque, no meu caso, de que adiantaria correr se o ônibus só desceria a serra depois das duas horas.
_____Fui, então, resolvendo as questões com calma; ponderando, repensando, recordando as lições dos professores. Volta e meia, roía um Passatempo, levava a garrafinha de água à boca. Preenchido o gabarito, saí para o pátio. À sombra, o bicho-grilo ainda fumava; meus dotes detetivescos entraram em ação: espera alguém que não terminou o exame, provavelmente a namorada, ou o namorado vá saber.
_____Sem nada para fazer, e com o tempo sobrando, caminhei passos lentos. Atravessei as Quatro Pilastras, fiquei observando: atletas de fim de semana; uma ou outra criança de bicicleta; bem-te-vis e sanhaços saçaricavam no gramado; um casalzinho ria e gozava a paixão sentado na linha do trem. À sombra duma árvore, uma moça de cabelo azulado lia um livro, sem se importar com a garça que caçava almoço na lagoa. Imitei a moça, sentei-me noutra sombra. Um sabiá-laranjeira se assustou comigo, saltitou para uma moita, donde ficou me encarando, ressabiado.
_____Deitei-me na grama, a mochila fazendo de travesseiro. Abri o “Ensaio sobre a cegueira”, que eu lia desde o início da semana. Um bombadinho sem camisa passou correndo com um cão preso à guia, um carro cortou a Rolfs como se estivesse nas pistas de Mônaco.
_____Abri uma barra de chocolate, percorri mais algumas páginas, sorvi a leveza de um domingo. Tentei não pensar que, em breve, estaria distante daquele campus, não veria mais aquela lagoa, os passarinhos e as buganvílias que coloriam a paisagem. Tentei, contudo, impossível não pensar. Entristeci-me, apesar do chocolate. De mansinho, o sol chegava às páginas, relava meus dedos.
_____Quando deu minha hora, guardei o livro na mochila, bebi o resto da água, bati a mão na calça para tirar a terra e a grama. Procurei o sabiá, mas o danadinho “caíra no capinado”, escafedendo-se para outras bandas. Lancei um derradeiro olhar à lagoa, olhar de plataforma de embarque, pendurei a mochila no ombro, parti.
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