O ‘nosso Quim’

"Nunca ninguém o descobrira a escolher os rios das paisagens, quando o afeto se tornara uma urgência e as palavras alheias eram tão somente meros acessórios, a desmultiplicar a constância da dor vivida em privado." 


REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 



_____Todos o conheciam, o “Quim”.  

_____Pelos dias, meses e anos da sinuosa caminhada desbravada, todos o conheciam, o “Quim”.  

_____Sorriso fácil, preso nas gargalhadas sonoras que brincavam com o velho cigarro ao canto da boca, numa melodia de voz executada em andamento lento. Olhinhos cintilantes em busca das miudezas do coração que tanta falta fazem aos afetos de um homem. Anedotas arrastadas pela noite fora com os compadres do coração. Picardia aqui, risotas acolá, cumprimentos com pitada de malícia adocicada a espreitar-lhe na curva dos lábios.  

_____Espelhava certezas, o “Quim”. Em cada gesto, um riso sem rancores, sempre com aquela mania linda de pôr a doçura ao serviço do elogio mais espontâneo.  

_____Era ele todo assim, o nosso “Quim”.  

_____Todos o conheciam, o “Quim”.  

_____Nunca ninguém o vira chorar as mágoas da vida passada. Ou sequer lhe conheciam queixumes, daqueles que se esvaem em sombras de fumo pelo ecoar do tempo, ao quente da lareira, em frias noites de inverno. Nunca ninguém o descobrira a escolher os rios das paisagens, quando o afeto se tornava uma urgência e as palavras alheias eram tão somente meros acessórios, a desmultiplicar a constância da dor vivida em privado.  

_____Mas o recôndito daquele olhar, esse, conseguissem os mais sensíveis vislumbrar, não lhe escondia a memória amarga e só dos enlevos que, no percurso acidentado da vida, ficaram por sentir, e do aroma doce das ternuras mais simples que fazem a grandiosa diferença.  

_____Perdido na indigência que aos outros é dado construir e feito de uma matéria infinita que apenas o seu coração abraçava... todos o desconheciam, o “Quim”.  

_____É esta a estranha linguagem que os homens falam no silêncio da alma despida, a mais complicada de ler. 


 TEXTO: Paula Freire 

FACEBOOK: Flor De Lyz - Poesia & Fotografia 

Paula Freire é natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. É também desta editora o livro de poesia de sua autoria, "Lírio: Flor-de-Lis" (2022). Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, tendo organizado uma exposição com trabalhos seus, na cidade do Porto (a convite da Casa da Beira Alta), em setembro de 2022, sob o título: "Um Outono no Feminino: De Amor e de ser Mulher". 

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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                                              

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