"Comentei que estava procurando uma fantasia, 'não muito cara e que seja mais leve pra eu aguentar o calorão do Rio'. Ele sorriu, me perguntou se eu havia pensado em algo 'mais específico'."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____No estacionamento do shopping, encontrei Michael Douglas. Ele saindo, com duas sacolas de compras, eu chegando para zanzar à toa e tentar me distrair no cinema. Conversa vai, conversa vem, meu amigo disse que estava de malas prontas para viajar.
_____— Vou pro Rio, aproveitar o carnaval. Vamo nessa?
Enquanto ajeitava as sacolas no banco de trás do Fiesta, pensei: “esse sabe aproveitar a vida. Não faz nem uma semana que tomou um pé na bunda da Carmô e já tá aí, todo animadão, planejando viagem...”
_____— Terra chamando. Alô, alô. Tem alguém aí nessa cabeça oca?
_____ “De uns tempos pra cá tenho ficado meio aéreo”, justifiquei, pedindo desculpa. Michael Douglas riu, como se me entendesse bem. Pensei em perguntar o que estava acontecendo com o mundo, principalmente com as mulheres, afinal, não era só ele que estava jogado pra escanteio... Como se adivinhasse o que circulava em minha cachola, ele comentou:
_____— Estamos aí solteiros, de bobeira, o governador sancionou nossa data base... Cara, simbora pro Rio! Praia, sol, bloquinho, mulherada... Ó, tô descendo na sexta. Se quiser ir, me avisa, te pego em casa.
_____Deu um tapinha nas minhas costas. Entrou no carro, manobrou, despediu-se com um sorriso mal intencionado, se foi. Fiquei parado ali, entre os outros carros, pensando: “Michael Douglas tá certo. A vida segue, e eu já curti fossa demais. Se ele, que viveu uns três anos com a Carmô, superou o chifre, por que eu não vou superar, se meu namoro não completou nem um semestre?”
_____Decidido, entrei no elevador. Uma senhora falava ao celular; ao seu lado, um moleque sardento. Apertei o 3, ele me encarou, tirou o chiclete da boca, grudou-o no painel. Olhei para a dona, esperando que ralhasse com o pestinha, mas o assunto no telefone parecia mais interessante. Descemos no mesmo andar. Eles se foram para a área de alimentação, eu segui à direita, para a loja de fantasias.
_____Um rapaz de barba rala, glitter no rosto e um par de chifres à lá Malévola veio me atender. Comentei que estava procurando uma fantasia, “não muito cara e que seja mais leve pra eu aguentar o calorão do Rio”. Ele sorriu, me perguntou se eu havia pensado em algo “mais específico”. Veio à lembrança meus tempos de garoto, a fantasia de índio que a mãe costurou para mim.
_____— A sociedade, felizmente, evoluiu. Hoje em dia devemos respeitar os povos indígenas, não nos fantasiar com cocares e penas coloridas que só reforçam estereótipos. O senhor deve estar acompanhando no noticiário o genocídio dos yanomamis, né. Usar uma fantasia dessas no carnaval não vai ajudar em nada a causa dos povos originários.
_____Desviei o olhar para as estantes. Plumas, paetês, pacotinhos de serpentinas e confetes. “Talvez eu me fantasie de mulher, como fiz alguns anos no bloco das piranhas.”
_____— Pega mal e desrespeitoso um homem hétero-cis sair fantasiado assim. Sim, reforça o preconceito com a população LGBTQIAP+ e legitima a homofobia. O senhor sabia que o Brasil é o país onde mais se mata essa população?
_____Corri os olhos pelas perucas e máscaras, passeei os dedos pelos adereços à mostra no balcão. Comentei com o rapaz que meu amigo Michael Douglas, no bloquinho lá do bairro, sempre se fantasiava de Nega Maluca e que “todo ano usava um vestido chamativo e punha uma dessas perucas”, apontei a que estava no cantinho.
_____— Esse tipo de comportamento só reforça o estereótipo de que mulheres negras são hipersexualizadas, agressivas e, como o nome já diz, malucas. Enfim, é mais uma manifestação racista. Só falta o senhor dizer que pintava o rosto com tinta preta pra fazer black face e saía assim com esse tal amigo pelas ruas...
_____Para mudar de assunto, peguei uma máscara de plástico que estava caída no chão. “É daquele personagem da série... como é o nome mesmo?”
_____— É um absurdo o que essas séries e novelas fazem. Romantizam os serial killers, fazem com que as pessoas se espelhem neles e os idolatrem como se fossem exemplos.
_____Agradeci, dei meia volta. “E a fantasia, o senhor não vai escolher?” O rapazola perguntou, correndo atrás de mim. Pensei em fazer um discurso contra o politicamente correto, o mimimi e os escambau que deixou esse país sem graça e sem brilho, mas me contive. Parado à porta, disse-lhe apenas: “Vou fantasiado de Adão: é mais barato, mais leve, e não ofende ninguém”.
_____— Aí é que o senhor se engana. Não se deve mexer com personagens de cunho bíblico, nem fazer alusão ou deboche a qualquer credo. Vai que alguém lá em cima se enfeze!
_____Encarei seus chifres de plástico, saí em silêncio para o cinema.
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Adorei a crônica amigo Rapha! Sempre muito boas e bem escritas
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