Hora de voltar

"Abro a gaveta. Não seria a primeira vez: esses abusados já tomaram o meu iogurte, comeram quase meio pote da minha margarina, até o pedaço de bolo que ganhei no aniversário do meu afilhado ele devoraram."


REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 




______ A Delmaria vai aposentar, tá sabendo?

Respondo “não”, destampo a garra térmica. Sinceramente, nada que diga respeito a Delmaria me interessa. E desde que discutiu comigo a respeito de uns relatórios (quatro anos, nove meses e cinco dias, jamais esquecerei) passei a ignorá-la e ignorar tudo o que venha dela. Pra mim, é como se tivesse morrido. Quer saber? Pena que não morreu: assim eu não precisaria mais olhar aquela cara de reptiliana ressentida todas as vezes que adentro a repartição.

_____ Ela já solicitou no sistema a contagem de tempo, já preparou a documentação, vai vender as férias prêmio para acelerar a aposentadoria. Está mesmo decidida.

_____O café, como sempre, açucarado demais. Dou as costas para o Alpídio, abro a geladeira. Um friozinho assalta o estômago: não vejo meu pão com mortadela. Afasto um Tupperware, o pires com um pedaço de queijo mofado, a sacolinha cheia de hortelã e ora-pro-nóbis... “Será que comeram meu sanduíche?” pergunto ao pote de Hellmann’s. Abro a gaveta. Não seria a primeira vez: esses abusados já tomaram meu iogurte, comeram quase meio pote da minha margarina, até o pedaço de bolo que ganhei no aniversário do meu afilhado eles devoraram.

_____ Coitada, no fundo, no fundo não queria sair agora. Mas depois do que aconteceu... Você sabe, né, puxaram o tapete da Delmaria.

_____ “Não sei de nada, só quero saber quem foi o desgraçado que catou meu sanduba”, resmungo, afastando uma caixinha de leite e o pacote de pão velho. “Ah, tá aqui!”, me rejubilo feito criança na noite de Natal. Alpídio ignora minha felicidade; sua preocupação, no momento, é relatar a vida funcional daquela sonsa. 

_____ Não achei certo o que fizeram com a Delmaria. A colega mais antiga daqui, a que tem mais tempo de serviço público... Você sabe, né, quando nós fomos empossados, a Delmaria já tinha trabalhado na prefeitura e numa escolinha na zona rural... Então, quando entrou aqui, criou expectativa que fosse suceder o chefe, né. Naturalmente, não é só a idade e o tempo de serviço que contam, mas a Delmaria preenche todos os requisitos que se possa imaginar: é dedicada, leal, sempre trabalhou sem reclamar inclusive fazendo serviços que não eram dela. Já perdeu a conta das horas extras que fez e, detalhe, nunca cobrou um tostão nem solicitou banco de horas. E na época da pandemia, lembra? Fez home-office, mas também veio várias vezes trabalhar presencialmente, e nunca se queixou...

_____Acendo o cigarro. Alpídio me encara. “É, eu sei que colaram aí no azulejo esse cartaz de merda pedindo pra não fumar na cantina mas, e daí?” Penso, não falo. Prefiro dar minha tragada: o silêncio é a melhor resposta. Mas o colega ignora isso.

_____ Delmaria nunca se envolveu em picuinha de servidor, não é uma daquelas que levam e trazem... Nesses quase vinte anos que estamos aqui, nunca ouvi ninguém reclamar dela. Me diz se você já ouviu a Delmaria tomar liberdade com qualquer um de nós? Chega pontualmente, senta e começa logo a trabalhar. Uma vez eu a chamei de Rose, aquela empregada-robô dos Jetsons, lembra? Ela não gostou; me chamou no corredor e disse, com aquele jeitinho elegante: “por trás de toda brincadeira há uma ironia, então, evitemos certos comentários”. Eu não me chateei, sabe, penso até que ela estava certa.

_____Olho o relógio na parede. “Que horas esse puto vai fazer silêncio?”, indago aos ponteiros.

_____ Ela é muito discreta e séria. Nem nos nossos happy hours e nas festinhas de fim de ano ela vai... Se bem que você também nunca vai, mas a Delmaria não é antissocial como você. Ela não vai para evitar se envolver em fofoca e disse-me disse, foi o que me explicou uma vez.

_____Me jogo na cadeira, seus pés riscam o chão feito garras. Sou um felino irritado, um Scar prestes a avançar sobre esse pulha que tirou a tarde pra me encher o saco. Mordo o sanduíche. O tomate murcho, a maionese escorre na minha barba. Procuro um guardanapo, não encontro; uso o pano de prato que a cantineira deixou pendurado no puxador do forno. 

_____ Delmaria está magoada com a sucessão, é isso. Não é que ela se queixou, sabe. Discrição ali chegou e fez morada. Mas, como você sabe, sou um bom observador. Desde que anunciaram o nome do novo chefe, ela está mais calada que o normal, abatida mesmo. Está triste e muito aborrecida, é isso. E não é pra menos, né? Uma servidora capacitada e eficiente como a Delmaria ser preterida por aquele gordo cínico... Francamente, tanta gente capacitada neste lugar e nomeiam logo o Pancinha pra chefia?! Ele tem metade do nosso tempo de serviço, concluiu a faculdade aos trancos e barrancos, não fez uma pós sequer... e, cá pra nós, enrola, e sempre enrolou, o serviço...

_____Pancinha. Eu o apelidei assim, logo que foi empossado no concurso. Glutão e atrapalhado, feito aquele ursinho Gummi. E não é que o apelido pegou? Sorrio. Pelo menos a falação do Alpídio serviu pra alguma coisa.

_____ “Aos aduladores pertence o reino das chefias”, ouvi um carinha lá do quarto andar comentar. E o Pancinha, além de puxa-saco, adora fazer aquele discursinho vitimista: “desde menino sofro porque sou gordo, porque uso óculos e nasci num bairro pobre”, “eu tenho um filho com necessidade que exige muito de mim”, “minha esposa, tadinha, vive deprimida”... E o incrível é que as pessoas se compadecem e sensibilizam com o ar de coitado dele. Puro teatro. Eu sei, afinal, sou um bom observador.  

_____Passos salvadores ecoam no corredor. Alpídio se cala, finge bebericar o café que esquecera no copo. Me encara novamente; seus olhos gritam: “apaga esse cigarro, doido, apaga logo!” Em resposta, dou uma baforada gostosa que acinzenta a cantina.

_____Para alívio de Alpídio, entra a estagiária. “A mais gostosinha do prédio”, ouvi comentarem outro dia, lá na portaria. “Tem gosto pra tudo”, retruquei, enquanto abria o guarda-chuva e descia pra rua... Ela pergunta se tem café, empurro a garrafa em sua direção. Forçando um cavalheirismo démodé, Alpídio se levanta, oferece-lhe a cadeira:

_____ Aqui o tempo é contado, sabe. A gente tem que assobiar e chupar cana ao mesmo tempo.

_____Ri do próprio comentário, e sai. Nisso eu concordo: Pancinha tem se revelado um tirano, controla cada minuto que a gente passa na cantina. Por isso fumo, bebo e como ao mesmo tempo. E sem tirar os olhos do relógio que, por sinal, já está me avisando: hora de voltar ao expediente. 

 

Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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