"Um ribombo faz a janela estremecer. Puxa, eu sempre quis escrever uma história onde trovões ribombam, tempestades furiosas caem e um personagem, angustiado, repensa o viver."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____Ligo a televisão, ainda está passando o MGTV. Olho pela janela: a ventania açoita as telhas da cobertura, parece que vai levá-las junto com os galhos da mangueira. Quando menino, a mãe sempre dizia para não ligar a televisão se estivesse armando chuva. “Cai relâmpago na antena e pifa o televisor”. Sentado no sofá, eu imaginava o raio descendo pelo fio da antena, explodindo nossa Sharp, me eletrocutando, me deixando mais preto que o Patolino.
_____Do conservatório, vem um coro. “Se eu tivesse continuado lá, certamente estaria cantando essa xaropada junto com esses alunos”. Aumento o som da televisão. “Senhor, onde eu estava com a cabeça quando me matriculei naquelas aulas de canto! Logo eu que, quando canto, pareço um peru estrangulado.”
_____O vento derruba o porta-retrato da estante. Ainda bem que não quebrou, eu o guardo desde os tempos da quarta série. A foto, meio amarelada, me traz recordações daquela manhã de novembro. Ao fundo, o coqueirinho que sombreava a porta da farmacinha. “Se você passar mal na escola, não toma nada, nenhum daqueles remédios que te oferecerem: escola não é hospital ou farmácia pra medicar menino. Pede pra professora telefonar aqui pra casa, que a gente te busca.” Nunca me esqueci do pai dizendo isso.
_____Fecho a janela, recoloco o porta-retrato no lugar. A camisa estampada que eu estava usando era de um coleguinha. O retratista não deixou tirar a foto com a camisa do uniforme. Não sei por que ele implicou com minha camisa branca. Lembro que, ao chegar em casa, comentei o acontecido e o pai ironizou: “Só aqueles cabeças-de-bagre mesmo pra fazer uma coisa dessa... O certo é o aluno ir uniformizado pra escola. E, se vai tirar foto lá, tirar com o uniforme, ora essa!”
_____Aumento o volume da televisão. “Vai na Fé” está começando. Renata Sorrah interpreta Wilma Campos, atriz que há anos não é chamada para trabalhar no teatro e nas novelas. O motivo: envelheceu.
_____ “Envelhecer não é fácil”, alguém comentou outro dia na repartição. Imediatamente lembrei de minha vó: “o tempo é um câncer que vai comendo a gente aos pouquinhos, sem a gente perceber”. Ela não aceitava a passagem do tempo. Olho a cena que se desenrola, penso: também não estou lidando muito bem com isso.
_____Um ribombo faz a janela estremecer. Puxa, eu sempre quis escrever uma história onde trovões ribombam, tempestades furiosas caem e um personagem, angustiado, repensa o viver. Ele questiona a existência, e os trovões não cessam. Impetuosa, a chuva fustiga as vidraças, a lânguida vela tenta resistir ao vento, e nosso herói filosofa acerca de uma tolice qualquer.
_____Os trovões insistem. Sinto o cheirinho de terra molhada adentrar o quarto. Torno a lembrar da mãe: “desliga esse aparelho, senão um raio vai cair na antena!” Naquele tempo, eu desligava, ia brincar com meus bonecos no quarto. Às vezes, nem precisava desligar: era só ameaçar chover... zás, a luz se escafedia. E levava horas para voltar. Quando voltava.
_____Os alunos continuam cantarolando lá no conservatório. “Parece um grupo de galináceos assustados”, penso. Abro a gaveta. “Coma-me”. É a última das barrinhas de chocolate que eu trouxe de Juiz de Fora me tentando. Sei que não devia, mas avanço para ela feito um lobo faminto sobre o cordeirinho. E, antes que a vozinha da consciência reclame, de novo, no meu ouvido, faço coro ao Lui Lorenzo: “Vamos!”
_____O primeiro bloco da novela ainda não terminou, já mandei para o bucho metade do Opereta que comprei na promoção da Americanas.
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