"Eu observava a cara de frustração dos meus pares quando ela se aproximou. Baixinha, cabelos curtos e grisalhos, o rosto do Raul estampado na camiseta..."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____No caminho do escritor aparece de tudo. No meu, apareceu uma certa Ava da Aves. Vejam só:
_____Estávamos desmontando os estandes, empilhando mesas e
cadeiras no canto do salão. Fim de feira é sempre a mesma coisa. Perto do palco
improvisado, alguém contabilizava o prejuízo: “vinte e cinco pessoas nos
visitaram, vendemos apenas três livros”. Foi o que ouvi, enquanto encaixotava
os meus. Diante de tal cenário, qualquer economista, até o mais medíocre deles,
seria categórico: deficit. À janela, contistas reclamavam do calor e “do povo
que nunca apoia a cultura”.
_____ “Como se os demais mortais tivessem a obrigação de
largar o conforto do lar e as emoções de suas séries para vir nos ouvir e ler
nossas idiossincrasias”, resmunguei, fechando a caixa.
_____Eu observava a cara de frustração dos meus pares quando
ela se aproximou. Baixinha, cabelos curtos e grisalhos, o rosto de Raul estampado
na camiseta, calça jeans, tênis All Star encardido. Disse que se interessara
por meu livro “mas não deu pra comprar porque as coisas tão ruins pro meu lado,
sabe; tive até que adiar o lançamento do meu de poesia”. Encostado à parede,
fiquei ouvindo o lero-lero. “Se as pessoas soubessem como ando farto das
desculpas que usam para não comprarem meu livro...”, pensei, olhando o relógio
à parede.
_____Conversa vai, conversa vem, ela me disse que fora ao
evento para tentar vender os livros de um amigo. “Onésimo é poeta de mão cheia,
sabe, nosso novo Drummond. Foi a Lisboa lançar uma antologia. Aí me pediu pra
vir aqui e divulgar os outros livros dele”. Pelo que entendi, receberia
comissão na vendagem (se é que vendeu algo, pensei, observando uns cronistas que
passavam, amuados, levando caixas abarrotadas).
_____Apesar de meus monossílabos, e do enfado que não fiz
questão de disfarçar, a mulher continuou a falar no tal Onésimo: “faz
maravilhas com as rimas, precisa ver. Os sonetos e dísticos e odes dele sempre
enveredam pela metafísica, sabe... E os versos alexandrinos? São divinos!” Ela
matraqueava, eu pensava na cama do hotel: chegara naquela feira das decepções
antes das seis da matina, depois de encarar mais de cinco horas num ônibus
estropiado.
_____Àquela altura, confesso, tudo me irritava: o trança
trança dos meus pares, a verborragia à lá Rolando Lero da mulher, as crianças
brincando na calçada, um alarme disparado não sei onde, o trânsito na avenida,
meu celular que vibrava no bolso avisando outra notificação... Descruzei os
pés, fiz que ia sair; ela notou e, na cara dura, me pediu um livro.
_____ “Hein?”, perguntei, provavelmente semicerrando os
olhos de um jeito estúpido, como sempre faço.
_____A criatura sorriu (um sorriso que revelou mais gengiva
que dentes) e, enfim, se apresentou:
_____ “Ava das Aves. Ava em homenagem à diva Ava Gardner e,
‘das Aves’, porque aspiro à liberdade que só elas têm”.
_____Novamente olhei o relógio, lembrei uma canção de minha
adolescência: “O tempo é inimigo/corre devagar...”
_____ “Organizo saraus e encontros literários pelo interior
do estado, sabe. Já trabalhei com Conceição Evaristo, Carla Madeira, Ziraldo,
Ana Martins Marques, Ricardo Aleixo, sabe, muita gente bacana”. Em síntese, se
dizia agente literária e, nessa condição, poderia me apresentar “pra uma galera
das artes e da literatura e, assim, fazer seu livro decolar”.
_____O escritor é, antes de tudo, um ingênuo. E, como um
belo representante da espécie, caí na arapuca. Dei-lhe um exemplar do meu
primeiro (e até agora único) livro de contos. “Autografa, faz favor”, pediu.
Autografei, fiz dedicatória... pronto, estava preso em sua cumbuca.
_____Ava das Aves, então, propôs me levar a uma tal Galeria
Subterrânea. Uma vozinha, talvez meu sexto sentido depois de anos de abandono,
sussurrou: “Cuidado, besta! Esta criatura vai te levar prum porão, te torturar
e roubar teus livros!”
_____As gengivas de Ava brotaram novamente:
_____ “A Galeria Subterrânea, sabe, é uma loja voltada pro
público de artes e cultura”.
_____A vozinha não se convenceu: “cai fora, bestalhão!” Mas,
como nunca lhe dei bola mesmo, acompanhei Ava das Aves.
_____Depois de rodar uns quarenta minutos, chegamos.
_____ “Tô sem nenhum. Sabe como é, a comissão do Onésimo só
vem depois”, justificou, descendo do carro.
_____O motorista me encarou pelo retrovisor. Coloquei a
caixa na poltrona, catei os trocados, paguei a corrida.
_____A loja, fechada.
_____ “Ai, esqueci que no sábado eles fecham mais cedo!
Vamos fazer o seguinte: qualquer dia a gente marca de sair pra conversar e,
nesse meio tempo, vou bolar um evento pra você divulgar seu livro”.
_____Olhei a porta de aço. Em letras góticas: Galeria
Subterrânea; abaixo, um desocupado pichou “17 é a mãe”.
_____A língua coçou: “tá me achando com cara de otário, minha
filha?” Contudo, segurei o verbo. “Vai que ela responde que sim...”
_____ “Deixa alguns exemplares comigo”, Ava se apressou em
dizer. “Segunda eu volto aqui e apresento seu produto. Quem sabe eles agendam
pra você vir aqui um dia se apresentar e falar dos seus projetos...”
_____Seduzido, embarquei no canto da cigarra. Abri a caixa,
tirei dez livros.
_____ “Vou precisar negociar minha comissão, você entende
né.”
_____Assenti. Ela disse que combinaríamos o valor depois,
pelo WhatsApp. Àquela altura, empolgado com futuras vendas, o peso da caixa não
me incomodava mais, já não pensava na cama do hotel, me via até palestrando,
ali na Subterrânea, para um público sedento por minhas estórias e meu
autógrafo.
_____Ava das Aves colocou os livros na bolsa, se despediu.
Dobrou a esquina.
_____Nunca mais a vi.
_____Fui a pé para o hotel. Caminhava e imaginava o sucesso
que meu livro alcançaria; elogios publicados na Ilustrada e no Rascunho;
entrevista nas páginas amarelas de Veja; um contrato com a Companhia das Letras
e o lançamento de uma edição em capa dura; o sucesso era tamanho, que eu me via
desembarcando em Lisboa, como o tal Onézimo; no aeroporto, Hugo Mãe e José Luís
Peixoto me esperavam para o pequeno almoço; após, zarpávamos rumo à Feira do
Livro de Frankfurt onde, sentado ao lado de Paulo Coelho, eu participaria de
uma coletiva de imprensa...
_____FOOOOON
_____Feito Laura A-menina-do-leite, não dei por conta que um
carro freara quase em cima de mim. O motorista baixou o vidro, xingou minha
pranteada mãe, enquanto eu recolhia os sonhos e os livros que caíram da caixa.
_____Meses se passaram, Ava não retornou minhas ligações
sequer respondeu minhas mensagens. “Visualiza, mas não responde”, me queixei a
um amigo. Ele soltou uma baforada, disse:
_____ “Ava das Aves avoou. É isso”.
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