Na rodoviária

“O ônibus apontou na esquina. As pessoas começaram a se enfileirar. 'Impressionante como o brasileiro gosta de fila', pensei, guardando o livro na mochila." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

.Text written in Portuguese - Select a language in TRANSLATE >.


_____Estava, como dizia a comadre Maria, “quitinho no meu canto”. Cheguei cedo (mineiro não perde o trem, quiçá, o ônibus), observei o redor, escolhi o banco mais longe do movimento para não ser incomodado. Retomei a leitura do meu Drummond enquanto o Unida não chegava. Mas aí...

_____Aí ouvi uma voz, que disse mais ou menos assim: “A pessoa quando é espiritualizada, é cristã, ela fala diferente, não aponta dedos”. Pensei cá comigo: conheço essa voz. Suspendi a leitura.

_____A rodoviária, apinhada de gente e malas, bolsas e mochilas, sintetizava o término do feriadão.

_____Um pardal veio saltitante. Ressabiado, me olhou de esguelha. Mais alguns saltinhos, bicou o biscoito que ainda a pouco uma menina deixara cair.

_____A voz prosseguiu: “A gente sente quando a pessoa é do bem, só dela falar a gente nota”.

_____Arisco, o pardal avoou levando um naco do biscoito. “É ela, tenho certeza”, comentei para o livro ainda aberto em meu colo. Tive vontade de virar para trás (precisava me certificar que a voz era de quem eu pensava), mas me contive. Fosse mesmo ela, e me visse sentado ali, com certeza ia bancar a educada, se aproximaria, se bobear sentaria do meu lado “pra fazer o social”.

_____E, sinceramente, eu não estava nem um pouco a fim de ouvir as baboseiras de Anúsia. Já basta o blablablá falacioso que sou obrigado a ouvir, todo dia, lá na repartição. Anúsia é daquelas que, mal batem o ponto, desembestam a falar do alheio. Às vezes, tenho a impressão que prestaram concurso para tagarelar. O serviço acumulado e elas lá, indiferentes, lixando as unhas e papeando.

_____“Ah, eu falei isso pra ele, querida: que admiro muito os jovens que frequentam igreja... independente da igreja, sabe, porque Deus tá em todo lugar. Apesar de eu preferir e não trocar a minha por nenhuma outra... Não, menina, claro que não falei isso pra ele”.

_____Anúsia, provavelmente, estava ao telefone. Ou, então, sua interlocutora era muda: eu só ouvia a voz dela. Ai, e que voz! Roufenha, irritante, cínica, falsa feito nota de três reais... Eu vivia comentando com os companheiros de burocracia: “Abre o olho com essa daí, gente! Ela se faz de boazinha, caridosa, mas é cobra peçonhenta”. Todavia, ninguém me dava bola. Até que um dia parei de gastar meu latim. Cansei de ser o profeta que prega a verdade à plateia que não quer escutar. “O pior surdo é aquele que num qué ouví”, dizia a comadre Maria.

_____“Pois é, ele comentou isso comigo, disse que gostou muito da pregação do pastor... Olha, querida, que ninguém nos ouça, mas tenho ranço dessa gente crente. Ô gente chata! Na minha rua tem uma igreja dessas. Toda noite eles botam o som na maior altura, ficam gritando ‘aleluia, glória, aleluia’... é insuportável. Hã? A ligação tá falhando”.

_____Um ponto confirmado: Anúsia falava ao telefone.

_____Em horas assim, eu amaldiçoo o inventor do celular. Depois que popularizaram essa desgraça, as viagens nunca mais foram as mesmas: as pessoas embarcam falando no celular, ouvem mensagens e gravam áudio o tempo todo, uma criança cisma de jogar, alguém liga funk com o volume lá na estratosfera, outra desanda a contar tragédias de família... A viagem fica tão longa, tão longa, sinto como se tivesse num trem-de-doido.

_____“Claro que não comentei nada disso, magina só! Já dou por satisfeita que encontrou o caminho... Parece, querida, sei lá, que fizeram lavagem cerebral no garoto. O comportamento dele mudou tanto, precisa ver. Não questiona mais nada lá no serviço, não fala de ninguém, passou a trabalhar com atenção... Tudo que peço, ele faz. Até cigarro e sanduíche busca pra mim na padaria, ó só! Lembra como reclamavam dele? Ih, mas mudou da água pro vinho, agora é outra pessoa. Se todos os estagiários fossem assim, eu não ia precisar trabalhar mais, menina! He he he”.

_____Sem sombra de dúvida, é a Anúsia. Eu reconheceria essa risadinha a quilômetros de distância. Como dizia a comadre Maria, “uma filhadazunha”. Em todos esses anos no funcionalismo público, juro, nunca vi uma criatura tão preguiçosa e ruim de serviço como Anúsia.

_____“A gente tem que botar essa juventude pra trabalhar, querida. Ainda mais depois dessa reforma aí na Previdência... Eu quero chegar perfeita e saudável à minha aposentadoria”.

_____O pardal voltou a bicar o biscoito. Certa estava a comadre: “a tal da estabilidade dá margem pruns troço ruim desse criar raiz”.

_____“Fazer o quê?”, indaguei ao bichinho que, malandramente, tombou a cabecinha para mim.

 _____O ônibus apontou na esquina. As pessoas começaram a se enfileirar. “Impressionante como o brasileiro gosta de fila”, pensei, guardando o livro na mochila.

 _____“Hã? não vai poder ir? É uma reuniãozinha rápida, só pras catequistas. A gente vai decidir quem vai coroar Santo Antônio. Cê sabe que, por mim, nem todos coroavam. Deus me livre, mas tem uns meninos lá que... Ó, querida, preciso desligar”.

_____Outro ponto confirmado: vamos no mesmo ônibus. “Quase vinte anos suportando essa criatura... ainda tenho que aguentá-la durante a viagem. Eu mereço! Só espero que fique caladinha e, de preferência, sentada bem longe de mim”, resmunguei.

_____“Fica com Deus, querida. Amém.”

_____Anúsia também entrou na fila: pude sentir seu bafo reptiliano em minha nuca. Felizmente, não me viu. Ou fingiu não me ver. O que, convenhamos, foi um favor que me fez. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
_______________________________________________________________
O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                                               

Comentários