Chiquinho Garnisé*

"Eu voltava da escola, correndo mais que o normal, e logo que cruzei a pinguela, vi: no meio da rua, a mãe zanzava pra lá e pra cá, as mãos no lenço da cabeça." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____O padeiro acabava de passar em minha rua, cesto estufado de pães, casadinhas, sonhos. A mãe passava o café. No rádio, encerrava-se a Consagração a Senhora Aparecida. Eu passava a faca no cream cracker, deixando respingar Claybom na toalha, quando o pai brotou na porta: no braço, um galinho. Que me encarou ressabiado, talvez temesse o que eu faria com a faca.

_____— Quê isso? A mãe quis saber, o bule suspenso no ar.

_____— A comadre tá desfazendo da criação, já deu as galinhas tudo. Me viu passando, ofereceu este aqui. Aí, pensei: o Nandinho vai gostar de ter um garnisé.

_____— Cruzes! Não basta essa periquitada sujando a varanda de painço... agora me traz um galo!

_____O pai coçou o cocuruto.

_____Saltei do tamborete: eu quero, pai, quero muito. Limpando as mãos na camiseta, avancei pra agarrar o garnisé.

_____có có có

_____— Esse seu bigodinho de margarina assustou o bicho. O pai debochou. E, virando-se pra mãe: tá resolvido, mozinho, o garnisé fica. E serve logo o café porque tem uma papelada dos diabos me esperando no escritório.

_____Esqueci os biscoitos e a cara emburrada da mãe (ela nunca gostou de ser contrariada), levei o galo pra varanda. Seu nome vai ser Chiquinho. Chiquinho Garnisé. Pronto: estava batizado. Ele mexeu a crista, em aprovação. Senti alívio saltar de seus olhos.

_____Enchi uma lata no tanque, catei alguns piruás na lixeira – não tinha jeito, a mãe não conseguia fazer pipoca mesmo – coloquei-os numa folha de jornal... O Chiquinho não quer nada, pai!

_____Com a boca cheia de queijo, o pai gritou de volta:

_____— Depois ele come. Deve estar assustado com o pulguento ali. Preso à corrente, Hindemburgo devorava meu indefeso galinho com seus olhos de pirata.

_____— Ô, filho, não deixa o garnisé no quintal quando esse vira-lata estiver solto, hein.

_____— Essa é boa! Agora cê vai querer que ele fique onde, na despensa?

_____Ninguém aguentava a mãe quando dava pra ser chata, putzgrila.  

_____— Depois de brincar, o Nandinho bota o bicho no viveiro.

_____— Uai, e o coelho vai ficar onde? Dentro de casa é que não! Doutra vez, cê lembra, ele comeu o pé da cadeira e, por um triz, não devorou o fio do telefone.

_____— Depois a gente vê isso, mozinho.

_____Com uma piscadela camarada, o pai passou por mim.

_____Chiquinho dormiu no viveiro. Sabino, meu coelho, no quartinho dos fundos. E Hindemburgo? Ah, esse com certeza passou a noite em vigília, tramando para capturar o garnisé.

_____No dia seguinte... bem, o dia seguinte raiou comigo esperneando: 

_____— Não quero ir na aula, mãe! Deixa eu ficar com o Chiquinho, deixa.

_____— Toma logo esse leite e sai, menino. Até parece que o bicho vai tomar chá de sumiço.

_____Contra a vontade, fui. Mas não prestei atenção em nada, esqueci até de merendar. Largado na carteira, pensava: as mães, sei lá, parecem pressentir quando tragédias vão acontecer... E aconteceu, mesmo!

_____Eu voltava da escola, correndo mais que o normal, e logo que cruzei a pinguela, vi: no meio da rua, a mãe zanzava pra lá e pra cá, as mãos no lenço da cabeça. Pereira, o vizinho, tentava encurralar qualquer coisa entre o poste e o muro. De longe, vi a coisa, agitadíssima, penas voando pra tudo quanto é lado.

_____— É o Chiquinho!

_____Joguei a mochila no chão, desembestei gritando na direção do Pereira. Que, àquela altura, talvez irritado com a falação da mãe - “eu falei que não queria outro bicho, eu falei, mas ninguém me escuta naquela casa” - tentava capturar o coitadinho.

_____— Larga meu garnisé, seu bunda mole! Larga, já falei! E dei um chutão na canela dele.

_____Pereira arregalou os olhos igual um sapo-boi. ‘Peste danada’, uivou, e saiu mancando... Pude imaginar sua dor: minhas botas ortopédicas eram pesadonas, os coleguinhas da escola viviam choramingando: ô tia, o Nandinho chutou a gente, tá doendo pra burro.

 _____O mais importante, contudo, consegui: salvei o garnisé. Que, com o coração batendo igual zabumba, saltou assustado pro meu colo.

_____— Vou dar sumiço nesse troço. Ah, eu vou! A mãe jurou, torcendo e retorcendo o avental.

_____Botei a língua pra fora, levei duas chineladas ao entrar em casa.

_____— Se fugir de novo, deixo ir embora. Não faço mais papel de besta chamando vizinho pra me ajudar, não.

_____Foi aí que percebi: a mãe mudava de ideia. À noite, com certeza, não amolaria o pai com a história de “dar sumiço” no Chiquinho. E ele, acho, sentiu o mesmo: já não arfava, a crista até voltara a eriçar.

_____Almoçamos sossegados: eu, arroz com batata frita; ele, o milho que, misteriosamente, brotara numa cumbuquinha.   

_____— A portinhola do viveiro tá quebrada, só aquele coelho tonto não percebeu. Mas esse coisa-ruim deu por conta, tratou de escapulir. Depois, trepou na laranjeira e saltou pela cerca que nem um lalau qualquer.

_____A mãe resmungava ariando a panela.

_____Amanhã, antes da escola, vou te colocar debaixo da bacia. Aí, você fica quietinho me esperando voltar. Vi meu xará fazer isso num livro, deu supercerto. A diferença é que no livro era uma galinha...

_____có có có fez Chiquinho atento aos meus planos.

 

* homenagem ao centenário de Fernando Sabino 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus textos no Facebook e Instagram, no site "Recanto da Letras" e no blog "Reminiscências literárias".
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