"Normalmente, os jovens da minha idade dizem que não gostam da escola, mas é aí que me sinto mais seguro. Na verdade, não na escola em si..."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Conto )
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_____Estava em casa. Estava farto de tudo o que se passava quando estava em casa.
_____Para muitos, a casa é um lar onde ficamos acolhidos e afastados dos perigos. Mas para mim, era exatamente o contrário. Os meus pais discutiam constantemente e eu não tinha onde me esconder dos gritos.
_____O meu pai já fora, várias vezes, reincidente em prisões preventivas. A minha mãe, uma alcoólatra que passava os dias a resmungar com tudo. Todas as noites saía de casa a gritar que estava cansada do mundo, que não suportava a vida e que ia divertir-se com as amigas.
_____Tenho também dois irmãos. Um mais velho, que foi morar sozinho porque conseguiu arranjar um trabalho que lhe permitiu a independência. E um mais novo, de quatro anos, que vive connosco.
_____Mas, e eu? O que hei-de fazer se todos os dias, ao chegar a casa depois da escola, vejo o meu pai a tratar mal a minha mãe, já praticamente bêbeda, enquanto o meu irmão, a chorar, "brinca" com os móveis e objetos da casa? Mais tarde, os serões são de fugir. O meu pai sempre à carga com berros e gritaria por isto e por aquilo.
_____Como disse antes, o meu lar não é lá dentro. É fora de casa.
_____Normalmente, os jovens da minha idade dizem que não gostam da escola, mas é aí que me sinto mais seguro. Na verdade, não na escola em si... Apenas num dos seus espaços, mais recolhido, mais escondido. É que na escola, eu sofro de bullying, por parte dos meus colegas, e é claro que os meus pais nunca fizeram nada a respeito disso. Houve uma vez em que o meu irmão mais velho, quando ainda morava comigo, tentou fazer uma queixa à direção da escola, mas disseram-lhe que teríamos de chamar os nossos pais para falarem com eles. Ele até me protegia, e tenho saudades dele, mas compreendo que o seu desejo era afastar-se daquele ambiente.
_____Se eu andar pelos corredores ou pelo pátio do recreio, e os meus colegas me apanharem, humilham-me de todas as formas criativas possíveis, gozam-me a cada possibilidade que têm.
_____Então, por que é que eu digo que me sinto mais seguro na escola? Bom... Porque há um professor que me percebe. Como já sei que não posso andar tranquilo à vista de ninguém, escondo-me no gabinete dele. Em todos os intervalos e horas livres, vou para lá. Converso com ele e sinto que sempre me compreendeu. Tem feito o que pode por mim, dá-me os melhores conselhos, protege-me e até já exigiu à escola que tomasse medidas sérias sobre o comportamento dos meus colegas. Sei que não tem margem para mais. Mas nada é simples. As palavras e campanhas de sensibilização com os alunos, sobre bullying e outras questões destas, são lindas. Mas claro que todos sabemos que, na prática, na hora da verdade, mais de meio mundo fecha os olhos. Porque é mais fácil e convém a muitos.
_____Este professor é, para mim, o meu segundo pai. Se calhar, o primeiro... Ele não tem filhos e já teve três esposas, mas nunca conseguiu tornar-se pai com nenhuma delas. Talvez, por isso, me veja e entenda como o filho que não conseguiu ter. Gosto muito dele!
_____Até que chegou uma manhã em que bati à porta do seu gabinete e ninguém abriu. Bati de novo e nada. Talvez estivesse atrasado, pensei. Mas durante a tarde repetiu-se a mesma situação. Supus que tivesse faltado naquele dia. Então, tive que passar os intervalos escondido nos WC da escola. Os dias repetiram-se assim, um após outro, durante quase uma semana.
_____Certa manhã, desesperado, levantei-me o mais cedo possível e fui à garagem onde o meu pai estacionava o seu carro velho. Procurei e coloquei na minha mochila a arma que ele tinha guardada, para situações de emergência como ele nos dizia ao ameaçar a minha mãe. Guardei quatro balas. Sabia bem a quem iria atirá-las. Três eram para o grupo que mais me infernizava a vida e a última era para mim. Saí de casa com tudo em mente e na esperança de não mais voltar.
_____Num dos intervalos surgiu a oportunidade. Estavam alguns alunos dentro da sala, incluindo os que eu tinha na mira. Era perfeito. Porém, virei os olhos para ver se havia alguma funcionária por perto e dei com o meu professor, que já não encontrava há uns tempos, a acenar-me ao fundo do corredor. Chamou por mim. Mas, naquele momento, estava mais interessado em cumprir o que tinha para fazer. Rapidamente, na tentativa de que os outros não me escapassem, fui até junto dele e perguntei-lhe se poderíamos falar noutra altura. Ele respondeu-me que não, que precisava de conversar comigo urgentemente. Então, pensei duas vezes e cheguei à conclusão de que não teria importância se aguardasse mais um pouco para colocar em prática os meus planos. Afinal, os meus colegas iriam estar sempre por ali. Respondi-lhe que tinha de ser rápido.
_____No gabinete, sentei-me como habitualmente na sua cadeira e ele perguntou-me como passara aqueles dias todos, sem que ele tivesse estado comigo uma única vez.
_____Nesse momento, vieram-me à cabeça as memórias de tudo. Dos meus pais quando chegava a casa, do meu irmão que chorava e não dormia, dos meus colegas que me tratavam mal e de muito mais. E quando dei por mim, estava a querer chorar. Senti o peso do mundo todo nos meus olhos.
_____Comecei a ficar nervoso e as minhas pernas e mãos agitavam-se cada vez mais. No fundo, sabia que ele pressentia que algo estranho ia acontecer. Até que, ao remexer-me na cadeira, a minha camisola levantou-se ligeiramente. Tornou-se visível que havia uma arma no meu bolso.
_____Foi quando o professor me perguntou:
_____— Para que serve isso?
_____O meu coração disparou e eu desabei a chorar. Chorei, chorei e chorei... Ele permaneceu, pacientemente, em silêncio e esperou que eu ficasse mais tranquilo.
_____Quando melhorei, consegui coragem para lhe contar tudo e sobre qual era o meu objetivo naquele dia.
_____Ele, cuidadosamente, pegou na arma e afastou-a de mim. Olhou-me nos olhos e disse que entendia como me sentia e porque queria fazer aquilo. Mas que não era aquela a melhor solução, nunca seria esse o caminho. Acalmou-me mais e prometeu-me que me ajudaria em tudo o que eu precisasse. Percebi, então, que ele tinha razão, que não seria assim que iria tirar a dor de dentro de mim. A vida exige muitas lutas e todos nós, nela, podemos ser guerreiros sem contribuir para o mal.
_____Mais sereno, corri para a aula, já bastante atrasado.
_____Foi nesse instante, ao entrar na sala, e antes que eu pudesse dizer ou sequer ter tempo para pensar em alguma coisa, que se escutou a voz do diretor da escola a falar no alto-falante que ligava o som a todas as salas e corredores.
_____— Venho dar conhecimento, a todos os que fazem parte desta escola, de uma triste notícia. Infelizmente, o nosso professor que não veio lecionar nos últimos dias, e como muitos de vós já sabem, acabou por falecer a noite passada no hospital. Os meus pêsames a todos os colegas e alunos.
A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora. Publicação autorizada pela pessoa responsável.
Parabéns Lara. Escreves muito bem e com muito sentimento. Algo muito actual o que tu escreveste. Parabéns Lara. Fico muito feliz por ti. 🌹🌺🌷🌹🌺🌷
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