Não me esqueça, São Paulo!

"A chuva avança, mas os ruídos de São Paulo continuam sendo os mesmos. Isso pouco importa. A cidade desvairada é apenas dona de si e dos arranha-céus, que tentam beliscar as nuvens. 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Deixou-me e partiu...

_____Atravesso a rua e uma chuva teimosa desce do céu. Aninho minhas mãos nos bolsos do meu casaco e fujo das gotículas geladas. Sinto um tanto de frio e venta bastante. Ao ganhar a São João, encontro um botequim. Nas prateleiras, bebidas variadas e cestas de frutas. Debruço-me sobre um balcão de mármore, enquanto meus olhos passeiam, com os petiscos e salgados, exibidos nas estufas quentes.

_____Um atendente de estatura baixa se aproxima de mim. Com seu sotaque mesclado de nordestino com paulistano, pergunta o que desejo. Após examinar o cardápio fixo na parede, peço um Bauru e uma xícara de café com leite. Rápido, ele saca uma caneta atrás da orelha e escreve tudo, num modesto bloquinho do Corinthians. Quantos pedidos será que ele anota por dia? Em algum momento, alguém já atendeu aos pedidos desse homem?

_____A chuva avança, mas os ruídos de São Paulo continuam sendo os mesmos. Isso pouco importa. A cidade desvairada é apenas dona de si e dos arranha-céus, que tentam beliscar as nuvens.

_____A São Paulo dos Josés e Marias é de todos e de ninguém. Segue solitária e apressada nas baldeações dos metrôs. Aqui, a loucura e a lucidez estão separadas em sua próprias adjacências. E as antenas de TV, fincadas em terraços, são punhais encravados em cimentos e tijolos.

_____Na rigidez de quem ama, o amor circula em São Paulo, ora paralisado nos quilométricos viadutos, ora no sobe e desce dos incontáveis aviões que rugem no horizonte. Do seu olhar cinzento, uma fissura azul tenta tingir o céu. Insinua camuflar uma tristeza, que por ora, eu sinto...

_____Mesmo assim, São Paulo me acolhe, com seu sotaque heterogêneo, que a faz ser poliglota em suas próprias raízes. Seus sons me batizam, são canções de uma cidade que tagarela, tudo aquilo que sente e vê.

_____Essa São Paulo maiúscula e robusta me assiste. Mesmo eu sendo mais um rosto embaralhado em tuas calçadas. Sou um pequeno coração pulsante, recluso num botequim da República.

_____Com a devida atenção, observo os fregueses que chegam. São homens e mulheres. Alguns sorriem, outros, apenas comem, bebem, descansam o olhar nos noticiários da televisão ou no vasto vazio de cada um.

_____A fome comprime meu estômago. E para minha sorte, o atendente reaparece. Solícito, ele traz com habilidade meu Bauru e o café com leite. Aprecio meu lanche com vontade, seu gosto é bom.

_____Tem sabor de tudo, tem sabor de São Paulo. 


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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