Meninos

"Abro o livro. Uma flor púrpura tomba sobre a página. Olho para cima: o ipê desabrochou de ontem para hoje." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Sento na praça.

_____Entre as arvorezinhas recém-plantadas e os restos do pau-brasil que a burocracia cismou de derrubar, uns meninos improvisam o campinho: dois pares de havaianas marcam as traves, o par-ou-ímpar define quem inicia a partida. Com fome de gol, correm atrás da bola.

_____Abro o livro.

_____Uma flor púrpura tomba sobre a página. Olho para cima: o ipê desabrochou de ontem para hoje. Deixo a pequenina flor ali, tingindo o grund da rua Paulo, saio à caça do parágrafo onde parei.

_____Em lentidão corriqueira vem o carro-funerário. Da caixa de som, tom forçadamente lúgubre, mais uma viagem é anunciada. Esta semana, se não me engano, já embarcaram uns quatro ou cinco infelizes... E ainda é quinta-feira, penso, tentando voltar à leitura.

_____Súbito, há altercação no campinho: os meninos reclamam, xingam o gordinho.

_____— Só uma besta mesmo pra marcar gol contra, grita o mulatinho sem camisa.

_____— Foi mal, gente, foi mal, o gordinho diz, olhos pregados nos pés empoeirados.

_____O carro se arrasta morro acima: “O corpo está sendo velado na capela mortuária de São João Batista, e o enterro será às 13 horas. A família enlutada agradece aos que comparecerem a este ato de fé cristã”.

_____Nos meus tempos de menino, a morte era anunciada pelos alto-falantes da Matriz. Primeiro, começava uma cantilena, um coro medonho fazendo ô ô ô ô ô ô ô; após, grave e solene, a voz masculina dizia o nome do falecido, de seus familiares, informava o local do velório... Eram ainda os tempos dos velórios em casa e, embora já existisse a capela mortuária anexa ao cemitério, raros eram os velórios ali. Ah, eu tinha tanto pavor daquela música, daquela voz. Bastava o primeiro ô daquele coro interminável, eu corria disparado pra baixo da cama, as mãos tapando os ouvidos. Inútil providência: a voz do Seu Mário penetrava-me entre os dedos, pavorosa, tétrica, mórbida.

_____Retomo a leitura. Nemecsek, o loirinho, trepado na árvore, ouve os planos dos camisas-vermelhas que pretendem tomar de assalto o grund... Corajoso, esse Nemecsek, penso, com um tiquinho de inveja.

_____Uma Honda para rente ao meio-fio. O motoqueiro levanta o visor, tira um papelote do blusão. Seus olhos agateados percorrem as casas, a venda do Adão Pinto, salta o vira-lata que dorme esparramado na calçada, tornam a pousar no papelote.

_____A bola vem rolando, rolando, encosta na roda dianteira.

_____— Ô, cê num acerta uma, hein, grita um menino de boné.

_____O motoqueiro pergunta onde fica a casa 81. O gordinho o encara meio assustado, pega a bola, resmunga “num sei não”.

_____— E você conhece alguma Teresa Ataíde?

_____— Deve ser a Dona Teresão, merendeira lá da minha escola.

_____— Ondé que ela fica?

_____— A minha escola?

_____Não posso conter o riso. O sujeito, no entanto, amarra a cara:

_____— Não, sô. Quero saber onde fica a casa dessa tal Teresa Ataíde.

_____— Ah, Dona Teresão fica atrás do Pinto.

_____Agora é o cara da moto que não consegue impedir o riso. Desviando o olhar, indaga se conheço... e volta a pousar os olhos no papelote antes de declinar o nome.

_____Marco a página com o dedo, informo que Dona Teresa Ataíde reside ali mesmo, no 81, nos fundos da venda. Poderia ter dito como o menino, afinal, desde meus tempos de escola a conheço como Dona Teresão Merendeira.

_____Ele agradece, guardando o papelote. O gordinho aproveitou a deixa, se mandou pro campinho.

_____O mulatinho sem camisa, com a bola na mão, ordena:

_____“Cê vai ficar sentado ali! Não joga mais até segunda ordem, seu cabeça-de-bagre.”

_____É, apesar dos tempos, os meninos continuam os mesmos, penso, reabrindo o livro.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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