Um dia de cada vez

“A vida é o que é, traz, leva, mostra-nos, ilude-nos, magoa-nos, ensina-nos duras ou preciosas lições e quando temos de parar de romantizar e cair na realidade." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

.Text written in Portuguese - Select a language in TRANSLATE >.


_____Quem conhece a minha escrita, sabe que gosto de escrever sobre vivências, amor, situações inexplicáveis que por vezes nos acontecem e ajudam e sobre minha família. Tenho péssimo (ou maravilhoso) hábito de romantizar tudo, e julgo que é isso que cativa quem me lê, faz parte de mim e é quem sou.

_____Poder sonhar livre de circunstâncias e realidades que banalizam esta poética forma de ser e estar. Sonhar, apenas sonhar, e isso ninguém me pode roubar nem mesmo a realidade, seja ela qual for.

_____E o modo como a sinto, para mim, é de extremos, esta minha sensibilidade torna o mau, a fealdade humana, a crueza e a dor infinitamente mais dolorosa. E o amor! Bem... igualmente sinto tudo mais intensamente, sou daquelas das borboletas no estomago e noites de luar.

_____O mês passado, acordei e... estava surda, completamente surda, assim, subitamente. Fiquei em pânico,  olhava à minha volta, apenas silêncio, o mundo de repente se tinha silenciado, olhava as pessoas, via lábios mexerem-se, e eu, sentia-me isolada, meio perdida entre os meus pares.

_____E claro, erro enorme, fui à internet, e não gostei do que li destes casos. Fui ao hospital com uma amiga pois embora falasse, nada ouvia, e encaminharam-me para um médico de clínica geral, cinco minutos estive lá, examinou-me e passou-me para outro colega. A mesma situação, depois de este me examinar, passou-me para um otorrino, finalmente.

_____Este especialista viu que tinha liquido acumulado nos canais auditivos, provavelmente teria tido covid, tinham surgido outros casos. Levei uma injeção especifica e forte e toca a rezar para que o liquido fosse saindo sozinho, ou teria de voltar e ser submetida a uma cirurgia para ser retirado o liquido.

_____Esta amiga foi a minha voz, fosse onde fosse, farmácia, receção hospital, até num café, porque embora fizesse sinal que não ouvia, as pessoas olhavam para mim e continuavam a falar, eu olhava para ela, e ela escrevia num pequeno bloco para eu responder.

_____Senti na pele, como é ser “deficiente” e é uma palavra muito forte e um pouco inadequada neste caso, mas o modo como me olhavam (inconscientemente, claro), me fez sentir inútil, foi indescritível. Nem consigo imaginar quem vive situações realmente piores e complexas.

_____À noite minha mãe e esta minha amiga queriam dormir comigo, com receio da reação ao medicamento. Não quis, estava bem, e tinha comigo meu filho mais novo, de 16 anos, que quis assumir essa responsabilidade, e ao falarem entre si, consegui pelos movimentos labiais perceber um pouco do que falavam, algumas palavras, ou já começara a aprender a ler assim, realmente somos seres facilmente adaptáveis.

_____O meu rapazote veio se deitar comigo, pouco depois adormeci abraçada a ele (tão bom) e desliguei.

_____Pelas 4h da madrugada acordei e já não consegui dormir, estou a escrever esta crónica deitada e já são 7h da manhã. Mas ele sentiu-me mexer e perguntou se estava bem, respondi que sim, e ele abriu o braço e aconchegou-me no seu peito, tem 16 anos, mais alto que eu e aficionado de ginásio, é um miúdo “enorme”, em todos os sentidos.

_____E ali, aconchegada, talvez por meu ouvido estar encostado, ouvi o seu coração bater, talvez já não o ouvisse desde a ecografia, e algo dentro de mim se quebrou, e chorei, chorei... Não apenas da sensação de me sentir abraçada e segura, ou de me ter trazido a memória dessa sensação, vivida em outro peito.

_____Esperei um pouco e levantei-me, fui beber algo quente. Chamei pelas minhas gatinhas e, de onde estavam a dormir, lá vieram elas ter comigo, de andar torto, ensonadas, amor incondicional.

_____Deito-me no sofá, e duas delas (a terceira é mais recatada) vieram como de costume deitarem-se em cima de mim. A pequenina a esfregar sua cabecinha no meu rosto a mimar-me. Fui aquecer leite e novamente desmoronei, a vida muda em segundos, são momentos, ganhamos, perdemos, recordamos.

_____Meu filho novamente acordou, deu pela minha falta e veio ver se estava bem, acabei de beber o leite e fui me deitar. E de novo me puxou para o seu peito (por vezes trata-me como se fosse eu a filha, e cuida de mim, ambos o fazem, sou imensamente grata e afortunada por ambos), mas receosa de voltar às mesmas sensações, larguei o seu abraço e voltei-me de costas, e ele instintivamente virou-se, aninhou-se em conchinha em mim e apertou-me com força, sei que sentiu, o que eu nesse momento sentia.

_____Novamente memórias recentes, novamente um aperto e lágrimas. A vida é o que é, traz, leva, mostrar-nos, ilude-nos, magoa-nos, ensina-nos duras ou preciosas lições e quando temos de parar de romantizar e cair na realidade.

_____Mas traz-nos momentos destes, de puro e verdadeiro amor, filial ou animal. Sei que ficarei bem, e aqui não falo apenas da audição. Sei que haverá sempre alguém que nos ama por mais sós que nos sintamos. Não pretendia que esta crónica fosse deprimente e perdoem-me se assim vos fiz sentir.

_____Apenas quis mostrar que devemos valorizar cada momento. Por vezes temos tudo como garantido e se algo falha, parece que o nosso mundo desmorona ou acordamos noutra dimensão. Amar, perdoar, expurgar, recordar, curar, sim...

_____Mas acima de tudo, valorizar.






 TEXTO: Ana Acto 

FACEBOOK: http://www.facebook.com/anaacto 

Ana Acto, nasceu a 5 de abril de 1979 em Tomar, Portugal. Abriu em 2018 nas redes sociais uma página de autora com o seu nome onde partilha a sua escrita em poesia, prosa poética e reflexões. Escreve-nos sobre a vida, e sobre o amor em todas as suas vertentes, romantismo, perda, esperança e sensualidade. Participante ativa em saraus e tertúlias poéticas e coautora em mais de vinte obras coletivas. Lançou em 2020 o seu primeiro livro de poesia, intitulado “NUA”. Para além do gosto pelas letras, tem diversas formações em terapias holísticas e alternativas. 

_______________________________________________________________
O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                                         

Comentários