Gavetas

"Os retratos no corredor mostram os mesmos sorrisos, as mesmas paisagens, atiçam as memórias. Os sobrinhos continuam brincando." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Para preencher o ócio dominical, gavetas. De preferência, cheias de fotos e papéis velhos. Afinal, se antigamente os programas de auditório davam conta do recado, hoje livros e playlists são insuficientes. Por isso, tal como o condenado no tribunal, apelo às gavetas. As gavetas, ah, elas são imbatíveis.

_____Os sobrinhos espalham brinquedos na sala. Um bem-te-vi desgarrado gorjeia no bordão-de-velho. Guerreiro, o xexelento pangaré que passa os dias no terreno aqui em frente, pasta. É só o que faz, desde que o largaram ali. Como sei seu nome? Vez em quando um sujeito com cara de fronha-amarrotada aparece gritando “Guerreiro, ô, Guerreiro”, passa o balde d´água pela cerca, se manda. Uma vez que o bicho toma da água, deduzi ser esta sua graça.

_____O vento vagueia entre as folhas. A menina do trezentos e dois berra, não quer tomar banho. Um rapazinho, cabelos cacheados e torso desnudo, assovia calçada afora. Meus olhos se perdem nas suas costas largas e, por um instante, me alegro: a Perfeição raramente desfila nessa rua desmazelada e esquecida da municipalidade.

_____Súbito, o capim se excita lá no terreno. Guerreiro não está mais só: a cachorrinha do vizinho atravessou a cerca e corre em torno dele como se tivesse fogo no rabo. Noutro dia, alertei seu dono: já, já vai virar linguiça aí nesse asfalto. Mas o esquisito apenas riu — um riso que me lembrou Hefesto — e eu tratei de caçar o rumo do meu cafofo.

_____Quede as gavetas que preenchem a ociosidade domingueira? Calma, amigo leitor, muita calma. Afinal, tudo que se espera de um domingo é paciência. As gavetas estão quietinhas lá no quarto, pra onde vou agora, depois de muito janelar, levando nas minhas retinas o adônico rapazinho.

_____Os retratos no corredor mostram os mesmos sorrisos, as mesmas paisagens, atiçam as mesmas memórias. Os sobrinhos continuam brincando. A menina do trezentos e dois grita debaixo do chuveiro. Preciso urgentemente de uma caneta: um pensamento me ocorreu.  

_____Afasto a burocracia que há tempos virou parte do meu lar, frases copiadas de livros, recibos do condomínio, lápis sem ponta, o livreto de poemas que fiquei de dar pro meu professor, fotos da viagem a Curitiba, um santinho do vereador em quem desperdicei o voto, a prece de Cáritas, um jornal dobrado em quatro... da caneta, nem a tampa. Agora, porém, é desnecessária: o pensamento seria só mais um rabisco a povoar o mundo. Ademais, o jornal me despertou reminiscências.

 _____Segundo caderno d’O Globo. Na página quatro, garatujei tolices em azul. Naquela quinta-feira, sem nada para fazer antes do voo, anotei algumas coisas que assaltaram minha mente. Partindo do cabeçalho, enchi de tolices a matéria; não poupei o pobre horóscopo; passei pelas tirinhas; lasquei o derradeiro ponto no último quadrinho do Dahmer.

_____Viro a página à cata de outros rabiscos. Reproduzida no canto inferior, a nudez marmórea do Davi. Esbelto como o rapazinho que inda a pouco assoviava na calçada, parece me dizer: “Não escreveste mais, ó basbaque, pois teu repasto chegara trazido pelas mãos daquela serviçal desgraciosa e indolente”. Sim, ó augusto Davi, agora recordo: a moça largou os sanduíches frios e o refrigerante sem gás e voltou pro celular.

_____Hein? Ah, a leitora quer saber o que escrevi naquele feriado? A contragosto, deixo a perfeição renascentista e retorno à página quatro:

_____Dizem, o mineiro não perde o trem, nem avião. Chegamos ao Santos Dumont antes das oito, o voo previsto para as 12:55. O que fazer além, claro, do check-in e de despachar as bagagens? Primeira atividade: comprar um jornal. Pra colocar a notícia em dia, digo à senhorinha sentada ao meu lado. Um misto, outro misto, um guaraná. Nada faz passar o tempo. As notícias também não: corrupção, bravatas politiqueiras, milicos recusando o óbvio, políticos que dividem o leito pra se acasalarem antes das eleições, Angeli anuncia a aposentadoria, o Rio se prepara para ataques à democracia e, claro, pro Carnaval – o primeiro desde a pandemia – a iniciar-se hoje, no feriadão de Tiradentes. Esse ano vai dar Joaquim José da Silva Xavier na Sapucaí, pergunto ao painel de partidas. “Portão 2, por enquanto”, comenta a senhorinha. Viro as páginas: mais do mesmo. O sol clama um banho de mar. Rabisco bobagens no jornal depois das palavras-cruzadas. A tira do Urbano resgata memórias: o jornaleiro chegando na bicicleta, largando O Globo no portão, eu correndo pra ler o Mickey, o Calvin, o Hagar... pensei que não produzissem mais tirinhas desse simpático aposentado. Antigamente, eu ria; hoje me identifiquei com o velho sentado no banco a resmungar dos grilos, dos passarinhos, do tédio. O tempo teima em não passar. Um pacote de polvilhos pra ajudar. O sol insiste no banho de mar. Um gringo chato fala dum jeito indecifrável na mesa à minha frente. E o tempo não passa... vou ver se mudaram o portão de embarque. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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