A vareja

"A morte, não é anónima nem singular.

Morre junto, cada um que amou quem partiu."


REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____O corpo jazia leitoso no caixão. 

_____Um silêncio mórbido preenchia a sala fria

_____Três pessoas permaneciam na igreja a velar a falecida. 

_____O único movimento era de lábios que se mexiam monocórdicos, mecânicos, em orações decoradas a primor.

_____Uma varejeira quebra o silêncio, corre toda a igreja e o som do bater das suas asas, ganha uma proporção descomunal.

_____Inquietante, irritante, desconcertante...

_____O cheiro das flores penetra-me nas narinas, intenso. 

_____Curioso, como o cheiro das flores se transforma de acordo com a ocasião. 

_____As velas velam o corpo, tentando trazer alguma luz à alma. Olho-as, a chama outrora de fogo quente, é agora eléctrica, fria, informal.

_____A vareja continua na sua demanda de sair dali, correndo pela imensidão da igreja.

_____E o seu som rouba a paz, a concentração adequada ao momento.

_____Alguém diz “devia matá-la” e nem sei bem porquê, dou por mim a responder “aqui não, estamos na igreja”.

_____Como se o acto em si fosse mais pecaminoso por ser ali.

_____Ouvem-se os pássaros lá fora, é primavera, tento abstrair-me da vareja e concentrar-me nessa melodia .

_____Está frio, todas as igrejas são frias, vazias.

_____Mas cheias de calor quando alguém, uma alma que seja entre, cheia de FÉ. 

_____Entram novos familiares, pegam no ramo de alecrim, molham na água benta e salpicam o corpo para o benzer e purificar. 

_____Olho as imagens que adornam o altar, representações da vida do Salvador, doridas, tristes.

_____As estátuas que representam os santos, devem ter já largas dezenas de anos, desgastadas pelo tempo.

_____Alguém abriu a porta, a vareja finalmente saiu.

_____O som irritante foi substituído pela troca de condolências, murmúrios e lágrimas. Olho os semblantes pesados, de olhar distante, talvez recordando a vida, o sorriso da falecida. 

_____Também eu a recordo, uma mulher alta, de sorriso meigo e olhar carinhoso, sempre a conheci assim e assim deixou herança na sua descendência. 

_____Olho as coroas e palmas, com os cartões de sentimentos. 

_____Recordo a conversa na florista de manhã, “Quer um cartão para escrever?”, respondo que não é necessário, o cartão acaba por ficar para a família ler. Levo as flores, o que conta é a minha intenção. Agora penso na contradição que disse.

_____Verdade, ela já não lerá o cartão, mas de igual modo também não verá as flores.

_____Sim, apenas a nossa intenção conta e cada um a demonstra do seu modo.

 

_____A morte é um fim de uma etapa, e um recomeço.

_____Cada povo tem seus rituais de despedida, uns choram a morte, outros celebram a vida.

_____Os mais próximos sentem a perda com mais intensidade, os outros, a aceitam como algo que faz parte.

_____A família junta-se vinda de nem sei onde, pessoas que passam anos sem se ver, primos, tios, primos de primos, filhos de outros.

_____Olho para o senhor dos passos, carregando a cruz com ar sofredor, e recordo minha tia Irene que partiu cedo, cedo demais, uma das irmãs diz-me que lhe vai acender uma velinha, que quando ela estava doente pedia-lhe que o fizesse e agora depois de ter partido, era incapaz de lá ir sem o fazer.

 

_____Honramos a memória dos que amamos, cada um do seu modo.

_____Uns mantêm tradições e rituais, outros apenas lembranças com amor.

_____A morte, não é anónima nem singular.

_____Morre junto, cada um que amou quem partiu. 


.TEXTO: Ana Acto.

Ana Acto, nasceu a 5 de abril de 1979 em Tomar, Portugal. Abriu em 2018 nas redes sociais uma página de autora com o seu nome onde partilha a sua escrita em poesia, prosa poética e reflexões. Escreve-nos sobre a vida, e sobre o amor em todas as suas vertentes, romantismo, perda, esperança e sensualidade. Participante ativa em saraus e tertúlias poéticas e coautora em mais de vinte obras coletivas. Lançou em 2020 o seu primeiro livro de poesia, intitulado “NUA”. Para além do gosto pelas letras, tem diversas formações em terapias holísticas e alternativas.  

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O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                                         

Comentários

  1. Surpreende suas reflexões. Carregam-nos ao quintal da vida, através de uma parede de vidro. Tudo ali… Pertinho; emocionalmente perto.
    A vela vira sol. Que lindo!

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