"Não posso é chegar em casa encharcado como ontem. Mais um toró daqueles e eu vou pegar um resfriado das galáxias."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Vou caminhando, atento às nuvens que se acumulam sobre a cidade. “Vem chuva aí, gente!” Assim dizia um locutor da rádio, antes de encerrar seu programa, pontualmente, às seis e meia da manhã. Enquanto tocava a derradeira moda sertaneja, eu, também pontualmente às seis e meia, uniformizado e emburrado, empurrava o pão com Claybom.
_____Apresso o passo: o chuvão de anteontem me lavou até a alma. Não fossem os versos do Rei – “se o amor se vai/que vazio imenso fica em nossa vida/quanta solidão” – penetrando-me as emoções, a caminhada seria longa, longuíssima.
_____A canção, já nos acordes iniciais, se apossa de mim. Vou caminhando, entregue a saudosismos tantos... Saudade do quê, não sei. Também não me importa.
_____Sob a mangueira, uma égua pasta. Do lado, o potro de olhar tímido me observa. Vão se molhar, olha as nuvens vindo em disparada. Mas eles, acho, não leem meus pensamentos. Ou talvez leiam, e riam de meus temores infundados. Afinal, como diz o outro, a natureza sempre sabe o que faz.
_____Um gol branco reduz a velocidade. Para ao meu lado. Uma colega de jornada me oferece carona. Não conheço a pessoa ao volante, julgo ser seu namorado, talvez irmão. Isso, no entanto e neste momento, é o que menos importa. Não posso é chegar em casa encharcado como anteontem. Mais um toró daqueles e vou pegar um resfriado das galáxias.
_____Entro no carro. Pauso a playlist. Comento sobre a tempestade que se aproxima. Minha gentil colega fala sobre o feriado da próxima semana. Assim caminha a conversa: banalidades sobre o tempo, o feriado e o recesso do fim de ano, para não ficarmos em incômodo silêncio. Engraçado, as pessoas em geral odeiam o silêncio. Eu, pelo contrário, só me incomodo com ele quando estou dentro do carro dos outros. Em horas assim, destrambelho a falar como pobre na chuva.
_____O motorista, que até então mantinha um silêncio monástico, aproveita uma brecha no nosso papo-furado:
_____— Eu lembro de você. Você estava numa audiência que eu participei. Faz tempo que você trabalha aí, né.
_____Ele me olha pelo retrovisor. Não sei o que dizer. É tão bom falar do tempo, dos feriados e recessos ou, simplesmente, ficar calado viajando na nostalgia das playlists... E, de repente, vem esse sujeito, que não conheço, falar de uma audiência da qual não me lembro.
_____— Você digitava pro juiz. Eu tava sendo acusado naquela audiência. Um vagabundo aí me processou por lesão corporal. Coisa boba, eu era moleque ainda. Tinha o quê... uns dezoito, dezenove, não mais que isso. Só revidei o empurrão que levei na pelada. Mas o babaca me processou, posando de vítima.
_____Minha colega ri:
_____— Claro que ele não vai lembrar, faz tanto tempo isso. Explico-lhe que é impossível me lembrar de quem quer que seja, pois passa tanta gente pela sala de audiências. E arremato: é mais fácil as pessoas lembrarem de mim.
_____O carro para no sinal. O motorista vira para trás, talvez na tentativa de que o reconheça. Contudo, é inútil. Em média passam umas noventa pessoas por semana naquela sala e eu, mero digitador de atas, fico mais concentrado no teclado e no computador que nas partes e seus advogados, nos promotores e defensores.
_____Ele volta a encarar a avenida. Pelo retrovisor, noto seu desapontamento.
_____— Onde você quer descer?
_____Perto da praça. Vou passar na padaria, comprar uns sonhos.
_____Entre buzinas e fedentina de combustível, desço, pensando no porquê de ter dito que iria à padaria comprar sonhos.
_____Da calçada, vejo o gol parado no trânsito. Minha colega e seu sei-lá-o-quê me olham. Não tem jeito: vou ter mesmo que entrar na padaria, nem que seja para confirmar minha mentira besta.
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