"Meus dedos esbarram num Batmóvel. Igual àquele dos filmes que via na televisão. Embalagem na mão, viajo para outros tempos, bons e heroicos tempos..."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____A chuva me pega, literalmente, no meio da rua: estou atravessando de uma calçada a outra. Bem, como me falta paciência pra ficar sob marquises, entro na Americanas.
_____Passo por gôndolas de chocolates, leio cartazes com promoções: 2 por tanto, leve 3 e pague 2... um monte de números juntos assim, dezenas de gramas pra comparar, costumam me deixar tonto. Ah, minha vida seria bem melhor se eu tivesse vindo ao mundo com dons matemáticos!
_____Na barraca lá fora, uma canção do Engenheiros. Felizmente, ainda há camelôs sofisticados. Antes de encher a cestinha, porém, resolvo perambular mais um pouco: tenho tempo de sobra, meu compromisso só à noite. E, pensando bem, o toró não está com cara de que vai passar tão cedo.
_____Caixas de bombons, pacotes de biscoitos, caramelos, balas. Paro diante duma banca: dezenas, centenas talvez, de carrinhos. Modelos clássicos, outros parecidos com aqueles que transitavam pelas ruas de minha infância, réplicas de veículos mitificados por Hollywood. O preço, acessível. Por isso, me quedo aqui, olhando este manancial de miniaturas. Pra ser franco, não só olhando. Mexendo, revirando, vasculhando, fuçando feito o menino que descobriu um baú do tesouro no quintal. Quem sabe não encontro um Chevette branco 76?
_____Meus dedos esbarram num Batmóvel. Igual àquele dos filmes que via na televisão. Embalagem na mão, viajo pra outros tempos, bons e heroicos tempos... De repente, não estou mais na loja, não ouço mais trovoadas, rocks, o burburinho das pessoas. Peguei carona com o Homem-Morcego e, a toda velocidade, cortamos a infinita highway. Viajo assim, quando alguém — um vilão? — esbarra em mim.
_____A voz meio tímida pede desculpas. De volta à realidade, deixo o carrinho saltar pra junto dos outros. O sujeito robusto, barba por fazer, diz que se entreteve no celular e não me viu. Não tem cara de vilão. Aliviado, murmuro um tudo bem, e volto a remexer na banca.
_____— Coleciona?
_____Estou olhando por olhar.
_____— Meu menino tem uma porção. Se deixar, toda vez que sai quer levar um. Mas ele não curte esses modelos daí não.
_____Ele aponta o Batmóvel que, sem eu perceber, voltou à minha mão. Comento que me chamou atenção, o modelo. Bem feitinho, parecidíssimo com aquele do filme do Tim Burton que, imagino, não seja do seu tempo.
_____— Assisti na barriga da minha mãe.
_____Acho, uma interrogação se manifestou na minha testa.
_____— Meu pai adorava histórias em quadrinhos, super-heróis e tal... A mãe conta que eles tavam casados de pouco, ela já grávida, quando estreou o filme. Aí foram assistir no Excelsior... lembra desse cinema?
_____Puxa, a primeira vez que entrei num cinema foi justamente no Excelsior. Jamais esqueci aquela tarde ensolarada, as poltronas de madeira, a sala enorme. Eu tinha seis pra sete anos, em cartaz uma comédia dos...
_____— Tenta adivinhar meu nome, vai. Valendo um carrinho desses aí.
_____Implacável como se fosse um arqui-inimigo, detona minhas reminiscências propondo o estranho desafio. Olho bem sua cara larga, o azul-acinzentado de seus olhos... Não me diga que é Bruce Wayne?
_____— Michael Keaton.
_____Digo alguma coisa, rio? Na dúvida, observo a rua. A chuva passou. A vida voltou a circular apressada. Jururu, o camelô recolhe os guarda-chuvas encalhados.
_____— É ridículo mesmo, eu sei. Mas fazer o quê? A gente não escolhe o ninho onde vai nascer, né.
_____Dizendo isso, Michael Keaton se despede com um tapinha nas minhas costas.
_____Encantado, continuo olhando os carrinhos.
Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras".
O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
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