O beijo de Tchékhov

"A noite surge misteriosa e tórrida, mas o inverno russo é rigoroso e congelante com teus sentimentos, perfeição hermética, na epopeia de desnudar o amor." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____É um anoitecer cálido e úmido, pertinente para quem mora no Norte do Brasil. Com as têmporas a derreter pelo intenso calor, um vento tépido me sussurra uma devida melancolia. Sobre a mesa, a mochila de poliéster me convida para abri-la. Revisto, então, o seu interior e de lá, um objeto emerge seguro entre meus dedos. De capa dura, na tonalidade de um azul - turquesa. As letras áureas e garrafais nomeiam o livro: “O beijo e outras histórias”, de Anton Tchékhov. Sempre admirei esse autor russo, isso se vale tanto pela sua perspicácia literária, quanto pela sua forma engenhosa de se entregar ao gênero do conto. Literatura sempre tem um quê de afeto para mim. Por isso, quando tomei esse livro por emprestado, eu soube que não teria apenas Tchékhov e todos seus personagens. Ler Tchékhov, significava ler, a quem sutilmente, deu-me esse livro, como se fosse parte de seu coração.

_____A leitura perpassa os meandros do senso comum. E enquanto o arrebol incendeia o horizonte lá fora, tenho comigo o livro de Tchékhov, aninhado contra meu peito, tal qual um filho, resguardado entre os seios de sua mãe. Na ausência de quem perdi, Tchékhov resenha frases nas lacunas construídas, pelas sombras de quem amei. Beija-me no silêncio dos lábios, na conversão mais sútil, de ser cúmplice das suas palavras.

_____A noite surge misteriosa e tórrida, mas o inverno russo é rigoroso e congelante como teus sentimentos, perfeição hermética, na epopeia de desnudar o amor. Entre o que pode ser verossímil ou não, sou apenas um leitor que se lê, nas estepes russas, nas caçadas dos cães, no beijo ambíguo disparado na escuridão. Em minha tutela, o livro reluz, transforma minhas pupilas em duas esmeraldas.

_____Sobre a escrivaninha, eu o coloco, folheio sua primeira página e a encontro puída e amarelada. No alto da folha, o nome de um sebo carimbado. Tuas digitais, assim como de outros leitores, estão aqui impregnadas. E eu me uno a elas, a cada nova leitura que me proponho a realizar. Tchékhov me lê na aresta maior de um verão, que ele jamais haveria de conhecer. Manaus nunca será São Petersburgo.

_____Esse livro que me deste, pode ter o peso de uma pedra fria ou a leveza febril de um sonho. Mas rente à parede do meu coração, ele é um corpo vivo — que habita o mais profundo extremo da tua ausência.

_____Ausência que toco, em cada página percorrida com meu olhar... 

( IMAGEM - oproximolivro.net/blog/ ) 


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame é escritora, poeta e professora nascida em Manaus. É autora dos livros: "Português Amoroso" (2020) e "Cactos e Tubarões" (2023). Foi finalista do Prêmio Selo Off Flip (2022), na categoria conto e vencedora do 6º FLIM (2023), promovido pela Academia Volta-redondense de Letras com o conto: "Professor Jeremias Bartolo". 
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