Pulp

"Enfim, encontraram o pacote. Diz que o novato, encarregado das entregas no meu bairro, se embananou todo e o livro ficou embaixo da poltrona do carro." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____— Cara, ó só a gostosinha que peguei na minha última viagem.

_____— Jair, essa menina não é menor, não?

_____— Menor nada. Pedi a identidade.

_____— Ah, tá. E você acreditou mesmo que era verdadeira?

_____— Aqui no site garante que tem dezoito, ó.

_____— Já avisei: qualquer hora você vai entrar numa enrascada...

_____— Relaxa, cara. Não tô aqui, de boa?

_____— Tá bom, Jair. E aí?

_____— Aí que foi a melhor trepada dos últimos tempos. Pintou o maior clima com a gente. A garota é daquelas que topam tudo, man.

_____— E lá no Grande Hotel, deu problema?

_____— O carinha da recepção quis tretar. Mas fiz do jeito que cê falou: soltei duas onças na mão dele e ficou tudo tranquilo. Quer dizer, quase tudo.

_____— Eita, estou falando que uma hora dá rolo...

_____— Mania chata essa de pensar negativo, hein. Só não foi cem por cento porque...

_____— Por que, Jair?

_____— A puta é metida a intelectual.

_____— Como assim?

_____— Intelectual, man. Ela também curte leitura.

_____— Não entendi.

_____— Sabe aquele livro que cê me emprestou?

_____— Qual deles? Te emprestei um monte. E nunca mais voltaram pra minha estante.

_____— É que sou meio lento, cê sabe.

_____— Não sei de nada. Mas desembucha logo.

_____— Aquele que cê me emprestou antes de eu pegar a estrada.

_____— Te emprestei dois. O Crônicas de Motel e o Bukowski.

_____— Então, esse aí.

_____— O Pulp?

_____— Ahan.

_____— Que aconteceu?

_____— A puta levou embora.

_____— Como assim, “levou”?

_____— Levou levando, cara. Rapou, afanou, catou, surrupiou, passou a mão.

_____— E você não impediu?

_____— Foi na hora que eu tava no banheiro.

_____— E com relógio, carteira, esse Iphone de última geração aí dando sopa, a garota ia roubar logo o meu livro?

_____— Não tô te falando que ela é intelectual...

_____— Ô, Jair, como você deixa uma erudita dessas sozinha no quarto?

_____— É que a gente combinou o seguinte, man: quando terminasse tudo, eu ia descer com ela na recepção.

_____— Não! Eu não acredito que você ia bancar o cavalheiro e acompanhar a donzela desprotegida até o táxi.

_____— Claro que não, ô debochado. Mas pra evitar treta... Cê sabe que aquele hotel é cheio das regras.

_____— Sei de nada, não.

_____— Sabe sim, que eu tô sabendo.

_____— Vai, Jair, desembucha.

_____— Pro sujeitinho da recepção não tentar arrancar dinheiro dela, combinei de descer junto. Mas aí me bateu uma vontade desgramada de mijar.

_____— E foi nesse momento que a intelectual entrou em cena.

_____— Ahan.

_____— Puxa, logo aquele livro. Não te contei a saga que foi recebê-lo?

_____— Tô sabendo.

_____— Comprei online. O livreiro demorou quase vinte dias pra despachar.

_____— Tô sabendo.

_____— O pacote extraviou, foi parar lá no caixa-prego.

_____— Tô sabendo.

_____— Reclamei, ameacei ir ao PROCON. A loja pediu uns dias. Três semanas e meia depois, rastreando no site dos Correios, vi “objeto entregue”. Mas eu não tinha recebido nada.

_____— Tô sabendo.

_____— Perguntei ao síndico, que mandou perguntar à zeladora. Perguntei: também não viu pacote nenhum. Bati na porta de cada vizinho, ninguém recebeu.

_____— Tô sabendo.

_____— Fui no correio. Perdi a manhã na fila. Ainda engoli desaforo de um pau-de-bosta, que me olhou de cima a baixo e encheu a boca: “Se consta objeto entregue, é porque foi entregue”.

_____— Tô sabendo.

_____— Saí com vontade de mandar meio-mundo à merda. Na calçada encontrei aquela sua ex, a que faz faxina lá. Comentei sobre o acontecido.  

_____— Tô sabendo.

_____— Dias depois, ela veio me contar que falou pra gerente assim: “Ó, o escritor lá da Boa Vista tá puto da vida porque vocês perderam uma encomenda dele. E ele não vai deixar barato, não”.

_____— Tô sabendo.

_____— Sei lá o que passou na cabeça daquela gente... Vai ver, acham que tenho alguma influência no governo... Só sei que, segundo sua ex, passaram um pente-fino na agência.

_____— Tô sabendo.

_____— Enfim, encontraram o pacote. Diz que o novato, encarregado das entregas no meu bairro, se embananou todo e o livro ficou embaixo da poltrona do carro.

_____— Tô sabendo.

_____— E mesmo sabendo dessa novela toda, você deixou a porra da puta passar a mão no meu Pulp?

_____— Pois é, né. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 

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