Entre São Longuinho e o Cramulhão

"Enquanto ajeita uns documentos no scanner, recorda o desespero do outro  para concluir a faculdade e disputar com ele a substituição nas férias e demais ausências do titular." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )  

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_____— Vi a excelência saindo agora do elevador. Retornou das férias. Infelizmente.

_____Aldebaran solta as frases diretas e provocativas enquanto enche o copo. Os colegas nada comentam; alguns preferem sair da cantina.

_____— Ora, eu falo o que penso, e dane-se quem não gostar.

_____Dizendo isso, cata outro cream-cracker do pacote esquecido ao lado da fruteira.

_____De volta à escrivania, observa o chefe-substituto:

_____— Hum... querendo mostrar serviço, né, meu filho?

_____Revirando pastas e gavetas, o homem — agitadíssimo — quer saber onde estão os relatórios e mapas que imprimira há pouco.

_____— Ai, o Doutor quer ver tudo. E já!

_____Os terceirizados correm para ajudá-lo; Aldebaran continua observando. “Agora que a titular tá mais pra lá do que pra cá, esse sujeitinho precisa mostrar serviço de qualquer jeito”, pensa, sorvendo mais um gole de café.

_____Ele sabe — aliás, todo o fórum sabe — que o substituto ambiciona o cargo há tempos. “Quer porque quer o trono. É capaz de coisas terríveis, até fazer macumba, pra consegui-lo. Virou profissão de fé, foco, obsessão. Sonha com isso desde que entrou aqui.”

_____Aldebaran deixa escapar um sorrisinho de escárnio.

_____O substituto pede a São Longuinho que venha em seu auxílio. Aldebaran ri, fitando as mãos desesperadas, a papelada espalhada, os cabelos brancos caindo sobre o rosto suado.

_____Enquanto ajeita uns documentos no scanner, recorda o desespero do outro para concluir a faculdade e disputar com ele a substituição nas férias e demais ausências da titular. Recorda também a fúria com que o colega o encarou, no encerramento do expediente de trinta e um de julho de 2006, gritando:

_____— Não pense que engoli sua indicação pra substituir a licença-maternidade da escrivã, não!

_____Aldebaran — e toda a burocracia presente — se espantou. O homem, dedo em riste, prosseguiu:

_____— Dessa vez passa. Mas na próxima, vou mover mundos e fundos, recorro até ao presidente do Tribunal, mas quero essa substituição!

_____Foi naquele fatídico trinta e um de julho, uma segunda-feira abarrotada de leilões e audiências, que Aldebaran percebeu com quem jogava — e como seria o jogo.

_____— Achei, achei! Obrigado, meu São Longuinho, muito agradecido!

_____O substituto comemora dando três pulinhos no meio da secretaria. Aldebaran julga os pulinhos mais estúpidos que o sorriso escancarado no rosto manchado de sol.

_____— Se alguém me procurar, estou em reunião com o Doutor!

Agarrado à papelada, dispara em direção ao gabinete.

_____— Ai, ai... Esse daí será um chefete à altura: preenche todos os requisitos do cargo.

_____Os terceirizados o ignoram. O estagiário tira o iPhone do bolso. Dois servidores começam a matraquear sobre a final do Brasileirão. A servidora em estágio probatório comenta:

_____— Nossa, ele é tão dedicado. E tá ficando todos os dias até depois das oito, coitado, pra botar o serviço em dia.

Esvaziando a xícara na janela, Aldebaran retruca:

_____— Esse aí venderia a mãe — se a mãe ainda fosse viva — e entregaria a alma pro cramulhão, só pra assumir o trono. A mim não engana. Eu manjo esse tipo de gente. Só engana neófitos como você.

_____O estagiário atocha os fones nos ouvidos. Os terceirizados debatem o futebol com os servidores. A neófita lixa as unhas, cantarolando Deus cuida de mim.

_____À janela, Aldebaran almeja a liberdade dos quero-queros que brincam na grama do jardim. 

( IMAGEM: agenciagov.ebc.com.br/noticias )  


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 

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