"Mesmo com sol brilhando, se minha avó dissesse que ia esfriar, era batata. Melhor levar o casaco. Seus ossos eram videntes."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Depois que minha avó quebrou o braço, virou uma espécie de Moça do Tempo. No caso, Velha do Tempo. Sabia quando ia fazer frio, ou até se ia chover. Dizia que era porque lhe doíam os ossos.
_____Eu achava aquilo fantástico. Queria também ser uma Menina do Tempo. Saber, de antemão, se o recreio seria no pátio coberto ou se poderíamos brincar na quadra. Se daria para farofar com o Fusca em Santos no fim de semana, ou não. Para isso eu precisaria ter passado pelo ritual da fratura. E jamais quebrei nada, nem mindinho.
_____Já Vó Pina, não. Lembro de vê-la caída no quintal, perto da escadinha que levava à sua casa, a voz abafada pedindo socorro. Minha mãe a acudiu, e ela seguiu engessada por mais de mês.
_____Eu achava aquilo uma injustiça. Minha avó nem tinha colegas na escola, para assinar no gesso – outra quimera nunca realizada. Era tradição, a turma inteira rabiscar no gesso do amigo fraturado. Alguns chegavam a guardar, depois, o gesso coletivamente autografado. Hoje fazem uns gessos irrabiscáveis, o que não tem a menor graça.
_____Inconformada com minha inquebrabilidade, inventei meu próprio braço quebrado. Enfaixei, engessei com gesso de verdade. Descolei uma tipoia, ensaiei gemidos, serviço completo. Apesar do esforço, não convenci. Logo fui desmascarada e tive que arrancar tudo antes do jantar.
_____O braço engessado rendeu privilégios à minha avó. Ela não poderia fazer muito esforço na lida doméstica. Eu achava aquilo sensacional. Pensava em tudo que eu seria dispensada, caso me quebrasse. Se braço, quiçá o direito, estaria poupada das lições de casa. Um pé imobilizado garantiria o passeio de carro até as casas das tias, nos finais de semana, geralmente feito a pé. Ter osso quebrado me parecia, enfim, excelente negócio.
_____O melhor, no entanto, era mesmo o superpoder de extra-sentir e prever o tempo, conferido aos ex-quebrados. Mesmo com sol brilhando, se minha avó dissesse que ia esfriar, era batata. Melhor levar o casaco. Seus ossos eram videntes.
_____Ela morreu na primavera. De repente, no coração do meu avô ficou inverno. Sessenta anos juntos, feito passarinhos. Na maior parte da vida, ele cuidando dela e da casa, nessa ordem de importância. Eu achava aquilo bonito. Ele era brisa. Ela, tempestade. A morte da companheira é fratura exposta que não se vê.
_____Já não desejo mais quebrar nada, Deus me livre. Nem faço questão de profetizar o tempo. Os sonhos envelhecem, sim. Ou esfriam. Só sinto falta, em minha biografia, do gesso encardido, assinado pelos amigos. Mas não sou mais menina. Fiquei velha no tempo.
[ IMAGEM: https://www.designi.com.br/75a1a6c6bf5938fc ]
Silmara Franco é paulistana e publicitária. Nasceu em 1967 no bairro da Mooca, onde viveu por mais de três décadas. Hoje vive em Campinas/SP. Resistiu a transferir seu título de eleitor, apenas para poder visitar de vez em quando o colégio onde aprendeu a ler e escrever. Além de cronista, é autora de livros paradidáticos como “Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor” e “Você precisa de quê? A diferença entre consumo e consumismo” (finalista do Prêmio Jabuti 2017), ambos pela Editora Moderna. Manteve até 2021 o blog Fio da Meada. Redes sociais: Facebook e Instagram (fotografia: Helena Pazzetti).
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