Uma “felicidade fabricada” e, como tudo o que é fabricado tem seu prazo de validade, ela se
expira poucos dias após a virada do ano novo.
REVISTA VICEJAR - FILOSOFIA E SOCIOLOGIA
Mais uma vez os freios do tempo mostraram ser pouco eficientes, pois estamos novamente às voltas com outro final de ano. Fim de um ciclo... começo de compras! Atualmente, fazer compras passou a ser sinônimo de ir a um shopping center, quer seja na própria cidade, ou na região.
Nesse espaço, o frequentador busca e acaba encontrando um local que considera seguro, limpo, com um visual agradável, onde é compelido a consumir produtos e serviços, de maneira quase que inconsciente. Mas afinal, seria esse lugar algo positivo, ou negativo? Estaria ele sendo usado para acesso de qualquer cidadão, ou com objetivo segregacionista?
“Coisas divinizadas”
Em artigo publicado
na revista “Filosofia Ciência & Vida”, o Dr. Renato Nunes Bittencourt
apresenta uma visão sobre a configuração física de um shopping, fazendo
analogia ao útero materno, já que a climatização do espaço permitiria comparar
a sensação de acolhimento e bem estar vivida no ventre da mãe.
No texto, menciona o cientista social Erving Goffman, para quem a intenção das
lojas não é de consideração à pessoa, mas de atrativo para consumo: “queremos o
seu dinheiro, mas não sua permanência nesse recinto”. Esse formato
é chamado de “não lugar” pelo antropólogo francês Marc Augé, que envolve as
instalações para a rápida circulação das pessoas e os meios de transporte dos
grandes centros.
O que parece ser uma liberdade de escolha para o consumidor, na verdade
é uma indução à aquisição quase automática, já que as vitrines funcionam como
um espaço sagrado para adoração de “coisas divinizadas”, passando por estudos
minuciosos de design e cores, além de propaganda planejada para atrair o
consumidor-cidadão.
“Doce narcose da
existência de um mundo melhor”
O sistema de vigilância dos shoppings segue o modelo idealizado por
Jeremy Bentham, que representa o olhar onisciente de Deus, capaz de ver tudo.
Vivemos um momento social em que se evidencia a arquitetura do medo e esses
locais se assemelhariam a condomínios fechados, onde “as muralhas” podem dar
uma sensação de “segurança máxima” contra o mundo do “lado de fora”.
Segundo o pensador
polonês Zygmunt Bauman, “a insegurança alimenta o medo” e seria natural essa
preocupação contra as ameaças existentes. Cria-se, então, o que ele chama de
“doce narcose da existência de um mundo melhor”, graças ao monitoramento
permanente, visando blindar a pessoa de eventuais situações desfavoráveis.
Numa versão socioeconômica de “apartheid”, os abastados podem usufruir
desse espaço de lazer, com toda segurança. No entanto, aqueles considerados não
economicamente viáveis devem apenas consumir os produtos, retornando para as
suas residências tão logo finalizem as compras.
No final, é citado
que a “meta comercial do capitalismo tecnocrático consistirá na criação de
shopping-condomínio ou shopping-hotel”. Com isso, o ar respirável será aquele
advindo dos shoppings e as cores em nosso entorno serão as que compõem esses
ambientes e não as presentes em parques e jardins públicos.
“Feliz Compra”… Feliz?
As emblemáticas mensagens de “Feliz Natal” e “Feliz Ano Novo” foram, de
maneira subliminar, substituídas pelo desejo de “Feliz Compra”… Feliz?
Difícil de imaginar
ser feliz quando se tem de cumprir imposições sociais, adquirindo produtos da
moda e que atendam às necessidades do momento. Trata-se de uma ocasião em que
todos (ou quase) estão impregnados da patológica ditadura do “ter”.
Uma “felicidade” fabricada e, como tudo o que é fabricado tem seu prazo
de validade, ela se expira poucos dias após
a virada do ano novo, quando nos damos conta da rotina e constatamos que o
“novo” não chegou. Durante os demais meses do ano, virão outras datas e novos
desejos de felicidades. Muitas
vezes aquilo que se deseja é justamente o que mais se sente falta.
REFERÊNCIA: BITTENCOURT, R. N., O Apartheid Mitigado nos shopping centers. Filosofia
Ciência & Vida, São Paulo, ano VII, n. 93, p. 55-62, abr. 2014.
TEXTO: Paulo Cesar Paschoalini
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