Passado e futuro de um sofá

As lembranças trazem certa angústia, parece que estamos sendo indolentes para com o passado.

REVISTA VICEJAR - LITERATURA ( Crônica )



Não me recordo de ter sofrido com grandes preocupações na fase de criança. Ao acordar, a roupa de dormir sequer era tirada; o destino era aquele sofá velho, de três lugares, meio amarronzado e de tecido grosso, que já tinha o cheiro da nossa família.

Durante a noite, meu pai logo se esticava no canapé e seria impossível caber  todos, por isso ao lado havia sempre uma cadeira de balanço feita com fio traçado, normalmente onde sentava minha mãe. Já eu e meus irmãos tínhamos lugar certo naquele chão liso, feito de cimento queimado, friozinho e aconchegante, que cerâmica nenhuma poderia rivalizar em empatia.

Sempre tive uma vontade incontrolável de tomar as refeições no sofá, mas minha mãe conservava sérias regras sobre alimentação doméstica, o desjejum era servido pontualmente às 7 horas, almoço às doze e o jantar às sete da noite, sempre na cozinha, quer estivesse com fome ou não. O horário era seguido, nem que tivesse que levar um safanão na orelha para se levantar, ou mesmo um grito no meio da rua, para entrar em casa e apanhar as chinelas que serviam de trave no futebol de improviso.

Depois das refeições cada um partia para seus afazeres. E a alegria dessa união, repetida dia a dia, era a de estarmos de fato todos juntos, cada um com suas histórias e reclamações. Às vezes, era o momento para levar as broncas que foram perdoadas ou prometidas durante o dia; ou, simplesmente, a gente ficava silente, embora ligados por expressões faciais e risos bobos. 

Nos fins de semana íamos para o sítio da família. Inicialmente meu pai não tinha carro e a CG Titan vermelha, acho que de ano 94, de tanque quadrado e barulhenta, servia de lotação familiar e suportaria tranquilamente até cinco pessoas. Eu, sendo o menor dos filhos, tinha lugar ao tanque da motocicleta. 
A impressão dessa época é que a gente se apertava para fazer quase todas as coisas, mas nada parecia incômodo.

Hoje já não moro mais na casa dos meus pais. E quando por lá apareço, percebo que o sofá é três vezes maior que o antigo, mais moderno e largo; há duas mesas de jantar, uma na cozinha e outra em sala própria. Sem embargo as refeições são feitas em quaisquer cômodos da casa, ausente qualquer cerimônia; e os horários de comer parecem obedecer a fusos horários diferentes, pois o café sai às dez da manhã, por vezes substitui o almoço, sendo o jantar tradicional uma ocasião festiva.

Reunir todos é um caso de raridade. Quando a assembleia é finalmente montada, sem faltar integrantes, cada um tem um veículo próprio para ter mais liberdade de ir e vir no tempo em que lhe aprouver, fora os compromissos paralelos que disputam espaços com os da família. Por fim, é de se ressaltar que o sofá deixou de ser uma zona proibida para refeições.

As lembranças trazem certa angústia, parece que estamos sendo indolentes para com o passado. Em contraponto, não nos amontoamos mais para nada e fica a impressão de quê se sobra muito espaço na casa de meus pais.
 
Apesar disso, ainda somos uma família!  E existem coisas que não mudam. No vai e vem desses anos o sofá da casa da minha mãe, apesar de ser outro, ainda tem o mesmo cheiro. Todos nos sentamos nele, mesmo que em dias, horas e momentos diferentes. Tudo mudou em nossas vidas, mas essa mobília parece ter se adaptado com muita facilidade à modernidade. A todos os sofás do mundo meus votos para uma trajetória longínqua.










 TEXTO: Flaviano Roque 
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