Apenas um corredor

“Um corredor sabe que as pernas que o levam ao seu destino têm vontade própria, encontrando forças sabe lá de onde para seguir.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )


Sigo pela Avenida Maranhão, começo após uma série feiosa de aquecimentos, típica de todo corredor amador; vou trotando devagar e enganando o cansaço. Já faz alguns dias que não dava um pique, por isso a moderação é fundamental.

Recentemente, colocaram asfalto nesse chão de rua fazendo a atividade física fluir até mais agradável, posto que os paralelepípedos antigos, vez por outra, me agraciavam com uma topada desavisada. Se bem que não posso reclamar das pedras e solavancos, pois tendo a usar da exaustão do corpo como uma metáfora da vida: posso cansar, cair ou tombar feio, mas parar, nunca!

Um corredor sabe que as pernas que o levam ao seu destino têm vontade própria, encontrando forças sabe lá de onde para seguir; até um trupicão é saudável, desde que se transforme em impulso a favor da trajetória. É bem isso mesmo, correr é dar impulso a coisas boas que temos em nós, enquanto fugimos da rotina enfadonha, sendo cada metro percorrido prova que, interiormente, somos energia e combustão.

Nesse ritmo não profissional, chego à Avenida das Algarobas. Local que de fato está repleto com os pés-de-pau que lhe entregam o nome; de expressão seca, tronco duro, mas folhas sempre verdes. A gente que é da casa sabe se tratar de uma árvore humilde, de sombra espaçosa e que se contenta com pouca água. Ah... sortuda! Planta da seca numa cidade ilhada pelo Rio São Francisco, terra da energia e das usinas hidroelétricas.

Penso comigo – enquanto vou suando e esmurrando os pés no asfalto – que essas árvores vivem na fartura. Claro, nem tudo é abundância; ou pode ser que a abundância de uns seja o pouco de sustento de outros. Nas corridas que pratiquei, no fim do ano passado, por esse mesmo roteiro, observei famílias pobres acampando neste ponto. O objetivo era colher vagens de algaroba para vender a fábricas de ração... Era uma corrida, agora pra ver quem catava mais vagens do chão.

No mundo há pessoas que, aparentemente, têm menos sorte que um pé-de-algaroba. Uma dialética da frieza das relações humanas: não há fartura sem miséria... Eu percebi, não sei se você corredor também o fará... Parece-me que correndo podemos abrir os olhos para aquilo que, no conforto da locomoção automática, vai se perdendo de nossas vistas.

Logo me encontro perto de uma rotatória, com o corpo pesado e o fôlego curto, onde pude avistar – a minha direita – o monumento do Touro e da Sucuri, tão bem exclamado por Castro Alves em poema:

“A cachoeira! Paulo Afonso!
O abismo!
A briga colossal dos elementos!”

Só hoje esse desenho, de bronze escuro e de digladiação de bichos, começou a fazer sentido. A estátua, segundo os pauloafonsinos, reflete a disputa entre a força dos rios (serpente) e o conhecimento do homem (touro) que ao quebrar as rochas aproveita das quedas d’agua, gerando energia na Cidade de Paulo Afonso. Porém, não só isso, eu suponho que novamente se trata de uma corrida...

Como qualquer outra cheia de abismos; só que agora pelo conhecimento, a fim de moldar o curso das coisas e definir os futuros possíveis. Ironicamente, a energia produzida aqui tem potencial econômico para sustentar todas as famílias ricas, médias e pobres da cidade; entretanto, a algaroba – mais um vez fazendo sombra em meu roteiro – é, em algumas fases do ano, a única fonte de energia disponível pra quem não fez riqueza com o rio. Sem dúvida, existe um abismo...

Já nas últimas estiradas de perna, vou coçando a cabeça e refletindo... Algo existencial deve haver nesta atividade síncrona de mexer braços e pernas. Ao tomar os tênis e rumar para a pista, existe a possibilidade de novos estímulos, tudo parte integrante da esfera de responsabilidade do corredor, condenado a experimentar os contatos que se esforça para alcançar e, igualmente responsável pelos quilômetros ou lamúrias que deixou de percorrer.

Por fim, em contorno, percorro a Rua da Vitória e a Rua Quinze de Março para desbocar no roteiro inverso, de volta ao ponto de partida. No fim o corredor vai, vai... Some das vistas, como se fugisse de tudo. Mas sempre sabe o momento de voltar pra casa. Um conselho: que o fato de criar raízes não te insensibilize a ponto de lhe impedir de voar; e que correr não seja apenas uma fuga dos problemas naturais da vida.

Existirão demasiados abismos em todos os trajetos, a questão é saber se teremos olhos para enxergá-los. Quanto a mim, permaneço apenas um corredor, sem o conhecimento de moldar o curso dos rios, mas com a expertise de um pé-de-algaroba.








 TEXTO: Flaviano Roque 
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