Estória de pescador (ou de investigador)

“O ferro sendo forjado no fogo torna-se um metal mais forte.”

REVISTA VICEJAR - ARTIGOS E OPINIÕES


Quem labuta no ambiente policial tem reminiscências e tristezas que muitos, mesmo em troca de um salário, não suportariam. A delegacia tornou-se o receptáculo de problemas humanos – no atual sistema de polícia judiciária – mais imperito do setor público. Vamos com calma...

Não digo isso para mal afamar a instituição que me acolheu, e sim como observação sincera de que certas coisas são feitas para não funcionar. Penosamente, os bons profissionais, alguns inclusive que já tive oportunidade de ombrear ideias e dividir missões, ficam a mercê do jogo de interesses, apagados diante do seu esforço, como se enxugassem não somente gelo, mas também pedra.

Posso lhes dar a visão da sopinha de pedras, que são algumas instituições de segurança, por uma receita simples: de início se usa de uma remuneração que não condiz com a capacidade daquele 1/3 de bons profissionais – já que o restante, pela preguiça e pelos problemas de hidroxilas ligadas a carbonos saturados – recebe mais do que merece.

Sim meus amigos, o alcoolismo é um problema quase que estrutural na polícia. Adicione isso a uma gestão pífia, com um chefe lombrosiano e patologicamente inclinado a agir como um ser anormal e atávico; ah, caro leitor, quase que me esqueço! Os problemas da rua não são nada quando comparados à ausência de coleguismo, comunhão e corporativismo. É cada um por si e Deus por todos. Em um mundo de cão, aos poucos vamos apreendendo a caçar, porque aqui é assim: se você não for bicho, muito provavelmente, será presa.

A verdade é que nós – investigadores ou agentes – somos os sacerdotes da arte do disfarce social, facilmente diluídos em público; incansavelmente, tornamo-nos mestres da paciência em monitoramentos noturnos; e, no traquejo do dia a dia, adquirimos graduação como experts na lábia em busca de informação.

Não se engane, pois o sistema pode não funcionar, porém um bom investigador é ainda mais que um distintivo brilhante. O ferro sendo forjado no fogo torna-se um metal mais forte; o detetive vocacionado, que suporta os dias de um departamento sucateado de material humano, tem poucas opções além de se transformar em um hábil mentiroso.

Vez por outra nos aparecem bons policiais. Vem-me a mente que esses dias, numa investigação de local de crime, outro policial ao sentir o inconformismo da mãe chorando a perda do filho, não se conteve e disse que daria resposta: acharia o mal feitor.

No contexto ele sabe que mentiu: por ter em mãos uma perícia descompromissada; um local de crime descaracterizado e, especialmente, por trabalhar com pessoas que consideram cada corpo um número qualquer de ocorrência. E você? Não mentiria também? Bons resultados até ocorrem nesse meio, mas, quando acontecem, costumam ser produto de indivíduos iluminados, muito raros e mal compreendidos.

Nesse ponto, visto que meu horário de almoço é escasso, já é hora de narrar algo que dê sentido ao título dessa crônica, sem muitos detalhes é claro, uma estória de pescador que esses dias um amigo me descreveu. Não levem ao pé da letra. Resumindo...

Disse-me o seguinte: que em um dado plantão policial, cheio de ocorrências e flagrantes, chegou um senhor bêbado, trazido à delegacia pela polícia militar. Na ocasião inexistia motivo para registro ou mesmo alguma imputação de crime. Mas sendo costume, acharam de colocar o bebum para ficar em uma cela isolado, apenas para curar a cachaça... Alguns até diriam que era boa a atitude do investigador, pois certamente evitaria que o beberrão saísse e fosse procurar confusão em outro lugar. Pena que o infeliz estava meio depressivo.

Com a pressão e o efeito de sonolência, que o álcool projetou sobre o seu peso corporal; conjugado com a ideia que teve de colocar o cadarço do tênis no pescoço, dizendo que iria se matar – que obviamente ninguém deu valor, por parecer lorota –; acabou de fato vindo a óbito. Foi encontrado sem vida, altas horas da madrugada, no interior da cela. Aparentemente, a fita enganchou em uma quebradura da grade, travando o laço em sua garganta.

Segundo o colega, tendo em vista a prisão ilícita e que todos responderiam pela sucessão de erros, a solução foi transformar o ébrio em criminoso. Assim, fizeram ocorrência e captaram (toscamente) as digitais do defunto para identificação criminal. Nas ouvidas, fizeram constar que o mesmo estava recolhido aguardando translado para o presídio, tendo sido preso em flagrante após uma investigação minuciosa. No dia seguinte, o noticiário policial da região publicou que foi tudo uma lástima, não se sabendo o porquê do homem ter decidido atentar contra sua própria vida.

Ao terminar a narração, tive que chamá-lo de embusteiro. Não dei crédito a uma só palavra. No entanto, agora me vejo hesitando: o bruxo – bem disse – que a ocasião não faz o ladrão, apenas o revela. Pode ser isso, o homem é um ser mal por natureza e tende a se adaptar inclusive às coisas ruins. O mentiroso nasce feito, afinal todos mentem, mas numa delegacia, ele encontra também a ocasião ideal para se revelar.

Falo por que se existe justiça nos números e, ainda assim, se sustenta um modelo de polícia investigativa arcaica e burocratizante; deve haver uma explicação: sobreviver nesse ambiente depende da capacidade de omitir e falsear a verdade.

Sem sequer mencionar a cifra negra, o índice de elucidação de infrações no Brasil já é miserável. Para crimes dolosos contra a vida, se estima 5% ou 6% de resolução. Ou seja, se investiga pouco e quando muito, se investiga mal. Ao fim, tem gente grande brincado com a verdade e desvirtuado um sério comprometimento com a segurança pública. E cada vez mais investigadores vão se tornando pescadores. 








 TEXTO: Flaviano Roque 
INSTAGRAM: @cronicas_de_um_armador
_______________________________________________________________
O articulista atua como colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.


Comentários