O sertão vai virar mar

“A enxada é a muleta para o trabalho, sustentando o ser para não cair ao solo, abatido pela fraqueza.” 

REVISTA VICEJAR - LITERATURA ( Crônica )


O sertão é um mar... De esperança, força e persistência. No alvorecer tímido ao sol que rasgará tudo durante o dia, o cheiro da terra e o gargarejar das galinhas, compõe uma sinfonia atômica de resistência à dor.

Já disseram que "o sertanejo é, antes de tudo, um forte..." Verdade seja dita: a gente sabe que se a força estivesse ligada a sorte, os rios fariam o sentido inverso e o mar correria pra o sertão.

Assim, os pés tocam o chão de barro, segue-se automaticamente a cruz corpórea com duas ou três aves Maria. O ritual místico é cumprido sem falta; o espírito tem que estar empanzinado, pois normalmente se acorda com fome.

Os dentes tremem pelo vazio interno e a cabeça gelada vai trilhando alguma saída para manter a existência no mínimo; a enxada é a muleta para o trabalho, sustentando o ser para não cair ao solo, abatido pela fraqueza. É um lugar retrógrado, jamais um homem pode cair, muito menos chorar.

Já perto das 11h00 horas, aquele almoço de feijão e farinha. A mistura lembra a terra seca quando cai água; de barro e vida, de inverno abençoado por São José.  Assim – de bucho cheio – passa-se um tempinho pra assentar a boia, salvadora do náufrago faminto.

E, de volta a este calor escaldante, cozido por cólera divina, é natural pensar que, às vezes, parece que Deus esquece de dar sombra para uns coitados. Nesses cantos do mundo, onde os graus da rosa dos ventos querem ser acompanhados pelos da temperatura, o suor do trabalho molha a terra para o arado.

Às 18h00 horas, pontualmente, a rádio toca a Ave Maria sertaneja; e, em sinal de respeito, o nordestino se benze e exalta seu espírito. Parece só anoitecer no sertão após o chamado de Gonzaga. Nesse lugar, o rádio ainda é mais importante que qualquer parafernália elétrica.

Durante uns goles de cachaça, bate o sonho com o dia em que - na época de estiagem - os pingos de suor e lágrima serão tantos quantos os de chuva, para o sertão finalmente virar mar. 








 TEXTO: Flaviano Roque 
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