Anita Garibaldi

“A heroína de dois mundos empresta, ainda, seu nome a inúmeros bairros, ruas e avenidas brasileiras.”

REVISTA VICEJAR - ARTIGOS E OPINIÕES 


 

INTRODUÇÃO

_____A presente pesquisa foi realizada em razão das comemorações alusivas ao bicentenário de nascimento de Anita Garibaldi, que terão espaço no dia 30 de agosto de 2021. 

_____Aproveitamos esta oportunidade para agradecer ao presidente da Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, D. Alexandre Rurikovich, a “Medalha Comemorativa Bicentenário de Nascimento de Anita Garibaldi” que nos outorgou com a aprovação do Conselho Histórico e Cultural da Instituição que preside.  

_____Muito jovem ainda, Anita Garibaldi estreava no panorama histórico brasileiro como autêntica defensora de elevados ideais, como a coragem, a disciplina, a determinação e sobretudo a liberdade. Concretizava brilhantemente uma de suas tendências fundamentais: a de defensora da liberdade e da dignidade dos povos; com efeito, mais que a de simples adepta de processos revolucionários, havia em Anita Garibaldi uma verdadeira vocação para a liberdade. Para tanto, não lhe faltavam o ardor, o estilo, a inteligência e a noção dos valores essencialmente humanos. Essas foram as qualidades que demonstrou ao identificar-se com as causas de liberdade às quais dedicou sua vida de maneira integral. 

_____Existe uma forma de exteriorizar qualidades que se dá pela manifestação de apreço a tudo que eleva a condição humana, fornecendo-lhe independência, autonomia e liberdade. Os indivíduos sempre a exercitam quando, reconhecendo o próprio valor, dirigem-se ao bem-estar de seus semelhantes com a alma pura de sinceridade. Só mesmo os caminhos da sinceridade nos conduzem à percepção das inúmeras potencialidades que possuímos. Anita Garibaldi foi uma mulher que absorveu e exteriorizou, condignamente, os valores que acabamos de enunciar.  

_____Considerada, no Brasil e na Itália, como um símbolo de fidelidade, idealismo e comprometimento, Anita Garibaldi foi homenageada por seus patrícios com a designação de dois municípios, ambos no estado de Santa Catarina: Anita Garibaldi e Anitápolis. A heroína de dois mundos empresta, ainda, seu nome a inúmeros bairros, ruas e avenidas brasileiras. Impende ressaltar – e fazemo-lo com máxima deferência – que, em abril de 2012, foi sancionada a Lei nº 12.615, que determinou que o nome de Anita fosse inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília [1]. 

 

VIDA

_____Anna Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, tornou-se um símbolo histórico e heroico por sua bravura nas batalhas ao lado de seu marido, Giuseppe Garibaldi. Até hoje, não se encontrou qualquer prova de qual seja seu ano de nascimento, mas se supõe que seja 1821, de acordo com Wolfgang L. Rau [2]. Uma das poucas informações de sua infância é o fato de que Anita tinha nove irmãos e de que ela era a terceira mais velha. O pai, Bento Ribeiro da Silva, conhecido como Bentão, faleceu antes do primeiro casamento de Anita [3]. 

_____Apesar de não existirem registros de seu nascimento, o nome de Anita foi constatado em sua certidão de casamento [4]. Seu casamento foi realizado em 30 de agosto de 1835 na Igreja Santo Antônio dos Anjos, em Laguna [5]. Anita casou-se com Manoel Duarte de Aguiar, conhecido como um homem discreto e conservador que trabalhava como sapateiro. As biografias narram que esse casamento foi arranjado pela mãe de Anita [6]. A jovem não nutria nenhum sentimento por Manoel e, por isso, o matrimônio teve seu fim em menos de três anos [7], quando Manoel decidiu se alistar na Guarda Nacional do Império, retirando-se da cidade [8]. 

_____Em dezembro de 1835, o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi partiu para o Brasil após ser condenado à morte na Europa [9]. No País, passou a acompanhar ativamente o cenário político da época. Tomou conhecimento da situação atual na região sul, oferecendo-se em seguida para ajudar na Revolução Farroupilha. Ele e outros partidários se dirigiram para Laguna em julho de 1839 [10]. Lá conheceu Anita, e logo os dois iniciaram um relacionamento amoroso que duraria uma década. Por causa da dificuldade com o português, Giuseppe decidiu usar o diminutivo do nome “Anna” em italiano – Anita –, criando, assim, o nome de heroína [11]. 

_____Em 15 de novembro de 1839, ocorreu um contra-ataque do exército imperial ao exército farroupilha em Laguna, onde Anita e Giuseppe se faziam presentes. Parte da tropa, incluindo o casal, retirou-se para a cidade de Lages [12]. Em 12 de janeiro de 1840, os farroupilhas foram novamente surpreendidos na região de Curitibanos, próxima do rio Marombas [13], pelas tropas do coronel Mello Albuquerque. Anita tornou-se prisioneira no acampamento dos imperiais. O coronel lhe deu permissão para buscar o corpo de Giuseppe, caso ele estivesse entre os mortos. Contudo, Anita não o encontrou. Ao anoitecer, valendo-se inteligentemente de um descuido da tropa, ela fugiu do acampamento para encontrar seu companheiro [14]. 

_____Os farroupilhas decidiram voltar para o Rio Grande do Sul. Anita e Giuseppe se instalaram em São Simão, onde permaneceram durante a primeira gravidez de Anita. Após o nascimento de seu filho, que foi chamado Menotti, o povoado onde estavam foi atacado por Moringue, um capitão imperial que queria se vingar de Giuseppe por uma derrota passada. Anita, sempre corajosa e valente, juntou forças e decidiu fugir a cavalo com seu filho nos braços.  

_____Depois de se encontrarem na nova sede dos farroupilhas, em São Gabriel, o casal meditou sobre sua situação e decidiu se mudar para Montevidéu, no Uruguai, em 1841. Lá foram acolhidos pela família Castellini até que arranjaram um lar próprio. Giuseppe passou a trabalhar ministrando aulas e, posteriormente, como corretor de cargas para navios, enquanto Anita permaneceu cuidando da casa e de Menotti. Giuseppe e Anita se casaram oficialmente em 26 de março de 1842 [15]. 

_____Tempos depois, Giuseppe foi convidado pelo presidente Fructuoso Rivera a participar da guerra contra o ditador argentino Juan Manoel Rosas. Anita, por suas inúmeras qualidades, atrai a atenção da primeira dama, Doña Bernardina, tornando-se sua amiga e passando a frequentar sua casa [16]. Enquanto viviam no Uruguai, o clima de relativa paz e amistosidade proporcionou que o ilustre casal, Anita e Giuseppe, tivessem mais três filhos: Rosa (1843), Teresa (1845) e Ricciotti (1847). Rosa, infelizmente, morreu com apenas dois anos de idade por conta de uma difteria.  

_____Anita decidiu partir para a Itália em dezembro de 1847 junto dos filhos, encontrando-se em Nizza com sua sogra, Rosa Raimondi. Giuseppe partiu para sua cidade natal em abril de 1848, lá chegando dois meses depois. Ele logo se juntou às lutas pela unificação da Itália [17]. Anita chegava a se encontrar com Giuseppe ocasionalmente. Em 1849, após seu marido ter sido eleito deputado em Macerata e ter conseguido instaurar a República Romana, ela retornou a Nizza, grávida de seu quinto filho [18].  

_____Em 3 de junho de 1849, Roma foi cercada, e Giuseppe e seus companheiros preparavam a defesa da cidade. Anita foi ao encontro do marido para lutar a seu lado; porém, em 2 de julho, a república caiu, e a tropa italiana foi perseguida pelos franceses e austríacos. A maior parte da tropa desertou durante a fuga até Veneza e, dessa forma, Giuseppe decidiu dissolver o pequeno exército que conseguira chegar a San Marino. Durante essa jornada, Anita adoeceu severamente, precisando ser carregada por alguns homens para poder prosseguir com a fuga. Anita Garibaldi faleceu em Mandriole em 4 de agosto de 1849. Por consequência da fuga da tropa de seu marido, o corpo da jovem foi rapidamente enterrado na areia [19].  

_____Diz-se que uma menina encontrou um braço para fora da sepultura, o qual as autoridades posteriormente confirmaram ser de Anita. Seus restos mortais passaram por várias exumações, até que, em 1932, foram depositados, na cidade de Roma, em um monumento em sua homenagem [20]. 

_____Anita tornou-se a “heroína dos dois mundos”, pois lutou tanto a favor da república em sua terra natal quanto pela unificação do país de seu marido. O início da construção dessa imagem heroica vem da obra “Memórias de Garibaldi”, com sua versão definitiva sendo publicada em 1882. Nessa obra, Anita é descrita como uma mulher valente, esposa leal e digna de lutar ao lado de seu companheiro, representação que se perpetuou por toda a história. No Brasil, em 1907, publicou-se uma tradução da obra no jornal “O Intransigente”, no Rio Grande do Sul, que se tornou a base de livros de histórias e romances [21].  

_____A vida de Anita instigou historiadores e novelistas por sua presença em uma esfera social que, na época, era dominada por homens. Todos os seus feitos registrados tornaram Anita uma personalidade respeitada, que ganhou incontáveis representações literárias no Brasil e em outros países na América e na Europa [22].  

_____Por fim, foram lançadas inúmeras obras biográficas e romances que têm por objetivo atualizar essa personagem tão icônica da história brasileira [23], como o livro “I Am My Beloved: the life of Anita Garibaldi”, escrito por Lisa Sergio em 1969. A obra narra toda a jornada de Anita, focando em sua imagem de heroína e mulher apaixonada, disposta a enfrentar qualquer desafio para estar ao lado do marido. De acordo com a estética ideológica do romance, foi somente seu amor que a manteve motivada a participar das batalhas [24]. Isso demonstra a idealização do exemplo de mulher que se atribuía a Anita [25].

 

IMAGEM  

_____Prosseguindo com o mito criado ao redor da figura de Anita, percebe-se que, de início, ela foi lembrada mais como esposa e seguidora de Giuseppe Garibaldi do que como uma heroína por si só, tendo sua imagem valorizada no Brasil apenas a partir do século XX [26]. A figura de Anita esteve notavelmente presente em dois momentos: a primeira, em 1939, quando, na celebração do centenário do estabelecimento da República em Laguna durante a Guerra dos Farrapos, realizada como meio de chamar a atenção do governo para o descaso com as atividades portuárias da cidade, Anita foi retratada como heroína de Laguna; a segunda, em 2009, quando, no 150º aniversário de sua morte, lançaram-se romances históricos e trabalhos biográficos, visando novas representações da personagem [27].  

_____Como aludido anteriormente, o primeiro e principal relato da vida de Anita foram as “Memórias de Garibaldi”, escritas por Alexandre Dumas conforme as memórias do próprio Giuseppe Garibaldi. Nele, Anita é idealizada como heroína e mulher-soldado, imagem que seria perpetuada pelos historiadores [28]. Já na historiografia brasileira, após a proclamação da República, quando a figura de Anita passa a ser valorizada no Brasil, a heroína é representada com destaque para sua adequação aos padrões sociais de comportamento feminino de sua época [29]. Observa-se, portanto, uma figura histórica atravessada por ambiguidades e contradições em suas representações – ao mesmo tempo, um ideal de feminilidade conforme padrões do século XIX e um ideal de mulher guerreira e valente [30].  

_____É de interesse observar como os autores buscam representar Anita para que se compreenda o trânsito dessa personagem como ideal. Ribeiro (2011b) encontrou a mesma dualidade aludida acima nas representações literárias de Anita Garibaldi. Nesse trabalho, foram analisados os romances históricos “A guerrilheira”, de João Felício dos Santos, “Anita”, de Flávio Aguiar, “Anita Garibaldi”, de Julio A. Sierra, e “Anita cubierta de arena”, de Alicia Dujovne Ortiz, demonstrando como a personagem transita os espaços aludidos e como é representada de maneiras diversas a depender dos interesses da época e do autor, apesar de nunca haver um apagamento de sua participação no universo tomado pelo masculino em sua época [31].  

_____Em “A guerrilheira”, Felício dos Santos enaltece a imagem de Anita como heroína, guerrilheira, mulher corajosa e de atitude, tanto em ações como em palavras, frequentadora de espaços masculinos [32]. O romance “Anita Garibaldi” também o faz; contudo, adiciona uma maior problematização do rompimento das normas sociais da feminilidade por Anita, pondo em foco os embates da heroína com a sociedade – por exemplo, com sua mãe, que tenta dobrá-la por meio do casamento arranjado com Manoel Duarte [33]. Flávio Aguiar, por outro lado, questiona em seu romance “Anita” a história da personagem, uma vez que a própria Anita não relatou sua vida, mas esteve sujeita aos relatos de Giuseppe Garibaldi, cujas intenções podiam ser enaltecer a si mesmo; desse modo, Aguiar traz questionamentos quanto ao amor idealizado que Anita tinha por Garibaldi nos relatos do revolucionário, bem como quanto ao próprio personagem representado nesses relatos e nas representações que são seu fruto [34]. Por fim, em “Anita cubierta de arena”, Alicia Dujovne Ortiz propõe uma releitura completa dos fatos, apresentando a personagem como contadora da própria história; não como uma heroína republicana e humanitária, mas uma mulher preocupada com seu amado, que faz o que faz por ele, não por quaisquer ideais; uma mulher que não tem medo de ser ativa no amor, empossada de sua sexualidade e, portanto, desobrigada de agir conforme as normas para as mulheres [35].  

_____Trata-se certamente de uma figura complexa, tanto em termos históricos quanto em termos do ideal que paira no imaginário popular através de suas representações. Desde guerrilheira idealizada, animada por certos ideais, a mulher doméstica e conformada com as incumbências do papel que lhe fora imposto pela sociedade de seu tempo, passando por personagem despedestalizada, humanizada e romântica, Anita encontra diferentes e contrastantes representações no imaginário dos autores, sendo envolta pelo mistério da figura histórica que não deixou relato próprio. Contudo, não é de surpreender essa complexidade, tendo em vista o que a fonte primária do relato de Garibaldi tem a dizer sobre as façanhas e a vida dessa mulher guerreira.

 

NOTAS 

[1] BRASIL. Lei 12.615 de 30 de abril de 2012». Consultado em 13 de maio de 2012

[2] 1975, p. 66, apud RIBEIRO, 2011a, p. 23.

[3] ROHDE; FLECK, 2017, p. 2.

[4] RAU, 1975, p. 72, apud RIBEIRO, 2011a, p. 23.

[5] RIBEIRO, 2011a, p. 23.

[6] ROHDE; FLECK, 2017, p. 2.

[7] ROHDE; FLECK, 2017, p. 2.

[8] RIBEIRO, 2011a, p. 24.

[9] ROHDE; FLECK, 2017, p. 2.

[10] RIBEIRO, 2011a, p. 24.

[11] RIBEIRO, 2011a, p. 24.

[12] RIBEIRO, 2011a, p. 24.

[13] RIBEIRO, 2011a, p. 25.

[14] RIBEIRO, 2011a, p. 25.

[15] RIBEIRO, 2011a, p. 25.

[16] RIBEIRO, 2011a, p. 25.

[17] RIBEIRO, 2011a, p. 26.

[18] ROHDE; FLECK, 2017, p. 2.

[19] RIBEIRO, 2011a, p. 26.

[20] RIBEIRO, 2011a, p. 27.

[21] RIBEIRO, 2011a, p. 27.

[22] ROHDE; FLECK, 2017, p. 3.

[23] ROHDE; FLECK, 2017, p. 3.

[24] ROHDE; FLECK, 2017, p. 5.

[25] ROHDE; FLECK, 2017, p. 7.

[26] ROHDE; FLECK, 2017, p. 2.

[27] ROHDE; FLECK, 2017, p. 3.

[28] RIBEIRO, 2011b, p. 157.

[29] RIBEIRO, 2011b, pp. 157-158.

[30] RIBEIRO, 2011b, p. 158.

[31] RIBEIRO, 2011b, pp. 158-159.

[32] RIBEIRO, 2011b, pp. 162-165.

[33] RIBEIRO, 2011b, pp. 165-167.

[34] RIBEIRO, 2011b, pp. 168-170.

[35] RIBEIRO, 2011b, pp. 172-173.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. RIBEIRO, F. A. Anita Garibaldi coberta por histórias. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011a. (Coleção PROPG Digital - UNESP). ISBN 9788579832123. Disponível em: <https://hdl.handle.net/11449/109188>. Acesso em: 11 ago. 2021.

2. RIBEIRO, F. A. As histórias de Anita Garibaldi. Revista Alere, [S. l.], v. 04, n. 01, pp. 155-178, 2011b. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/alere/article/view/551. Acesso em: 11 de ago. 2021.

3. ROHDE, M L; FLECK, G. F. Anita Garibaldi: a brazilian heroine in a traditional perspective. Asian Research Journal of Arts & Social Sciences, [S. l.], v. 04, ed. 04, pp.01-11, novembro 2017. DOI https://doi.org/10.9734/ARJASS/2017/37117. Disponível em: https://www.journalarjass.com/index.php/ARJASS/article/view/11286. Acesso em: 10 ago. 2021.






 TEXTO: Rafael Mendes 

SITE: www.rafaelmendes.org 

Rafael Mendes, natural do Rio de Janeiro/RJ, empresário, produtor cultural, estudioso da Filosofia e do Direito, escritor, poeta e amante da linguagem e, em particular, das línguas portuguesa e latina nas empreende estudos autodidatas. Com o compromisso pessoal com a busca da Verdade e difusão da cultura, é autor de três livros: "Aspectos da transcendência a partir de uma análise despretensiosa", "Reflexões sobre espiritualidade concreta" e "Autores Clássicos e suas obras", além de ter escrito inúmeros artigos focados no estudo da Filosofia, da Espiritualidade e da Cultura Clássica. Desde 2020 mantém um website (rafaelmendes.org)  e um canal do Youtube (Rafael Mendes). 

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