“Volto meus olhos para as mesas ao redor. Todas vazias. No entanto, sujas: guardanapos e embalagens rasgadas, copos descartáveis e canudos espalhados."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____O calor, fora do normal. “Atípico”, Cunegundes soltou, ainda ontem, na repartição. Ela e sua velha mania de distribuir adjetivos a torto e a direito.
_____Entro na sorveteria. Tento, por alguns instantes, esquecer Cunegundes, os dissabores burocráticos, as metas mirabolantes da chefia... Ó, lá vai eu enveredando também pela trilha dos adjetivos.
_____O calendário pendurado na parede marca: 24 de setembro. Abaixo, uma frase da Seicho-No-Ie.
_____Prefiro, porém, prestar atenção na garota à minha frente: cabelos aloirados sob o New Era, sorriso encantador como o céu primaveril, body combinando com o boné... Ela digita a senha na maquininha do cartão, dispensa a sua via. Passa por mim deixando frescor de juventude.
_____Com ela, se vai uma reminiscência: largado no sofá assistindo a Sessão da Tarde, quantas vezes desejei viver numa ilha paradisíaca tendo por companhia apenas coqueiros e a Brooke Shields!
_____— Senhor? O senhor vai levar só o picolé?
_____A atendente, feito um resgate que eu não solicitei, me arranca da ilha, onde as límpidas águas lambiam minhas pernas e a garota se dividia entre o sorvete e meu corpo quase desfalecido...
_____— Hã? Ah, o picolé? Vou querer um.
_____Pago, procuro uma mesa.
_____A atendente comenta para a colega do caixa que “o calor deixa as pessoas meio lerdas”.
_____O lerdo, penso, deve ser eu. Empurro para o canto a garrafa plástica e os guardanapos sujos que deixaram na mesa. Sento, e a irritante voz de areia da atendente não sai dos meus ouvidos.
_____Observo a rua, esperançoso que a minha Brooke Shields, como num remake, retorne.
_____— E hoje ainda é o segundo dia da primavera. Imagina o verãozão como vai ser!
_____A pavorosa voz de areia não se cala. “Deve ser parente da Cunegundes”, concluo, já desanimado de olhar o asfalto que parece evaporar, os carros que não cessam de passar, o zé-droguinha que não para de amolar as pessoas que passeiam pela praça.
_____Falando em Cunegundes... Anteontem, quase no final do expediente, soltou esta pérola:
_____— O clima tá assim por conta do medonho e devastador El Nino. Ele vai castigar a gente esse ano, anotem aí. Eu vi aquele gracinha do, como é mesmo o nome dele?, falar na televisão...
_____Há também quem diga ser efeito do aquecimento global, pensei em lhe dizer. Mas, eu estava tão cansado de expedir alvarás e ofícios e ainda tinha uma lista enorme de prazos para certificar, que desisti. Deixei Cunegundes, seus adjetivos e dados meteorológicos pra lá.
_____Volto meus olhos para as mesas ao redor. Todas vazias. No entanto, sujas: guardanapos e embalagens rasgados, copos descartáveis e canudos espalhados. Em matéria de higiene, isso aqui já foi melhor, penso. Súbito, Cunegundes retorna à minha memória: ela vive chamando o pessoal dos serviços gerais de “inoperantes desmazelados”.
_____— A mãe faz aniversário hoje. Tá todo mundo comemorando lá em casa, e eu aqui trabalhando.
_____A incalável voz de areia volta a se manifestar. “Tá explicada a má vontade para limpar as mesas”, concluo, quase chamando-a de inoperante desmazelada.
_____Dois garotos se desvencilham do zé-droguinha, atravessam a rua. Vão entrar aqui, penso.
_____Bingo.
_____Ah, se meus poderes adivinhatórios funcionassem também com a loteria, nunca mais eu pisava naquela repartição insossa. Imagine só, passar o resto da vida sem precisar ouvir a Cunegundes... puxa, isso é quase como ganhar uma passagem só de ida pra Lagoa Azul!
_____— Tem trufado de Ninho, não, moça?
_____A voz do garoto é mais estridente que a da minha colega de burocracia. Coitado, deve sofrer com as zombarias dos moleques na escola, penso, enquanto o picolé começa a pingar na minha bermuda.
_____Arrastando as rasteirinhas, a atendente aproxima. Olha também para o freezer, conclui o óbvio: “Cabô”.
_____O outro garoto, mais decidido, já tem um picolé, de chocolate branco como o meu, entre os lábios. O de voz estridente insiste – aliás, é incrível como gente de voz irritante teima em falar e falar: “mas ontem tinha de Ninho”.
_____A cara que a atendente faz é, para ficar com um adjetivo cunegundiano, impagável.
_____“Vou levar esse aqui, então. É cinco, né?”
_____Graças aos deuses do silêncio, a atendente apenas assente com a cabeça.
_____Os garotos pagam, saem à rua. De repente, me bate uma saudade dos meus quatorze anos e dos picolés de limão que eu comprava na vendinha lá perto de casa...
_____Outro pingo na bermuda. Mais outro, agora na mesa.
_____Uma senhora, cheia de sacolas do supermercado, entra:
_____“Menina, tem sorvete zero açúcar?”
_____Antes que a voz de areia se pronuncie, deixo o resto do picolé na companhia da garrafa e dos guardanapos e caço o caminho de casa.
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