Outono... um tempo simples

"É um sol que ilumina sem aquecer e, por isso, quando o corpo lhe toca em tudo o que vive, reflete-se como num espelho onde ele se revela." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Sentado num banco, entre as folhagens e as sombras despertas, pensa. Sim, ele ainda é capaz de pensar. Só os mortos deixam de o fazer. Enquanto for vivo, mesmo que as ideias lhe venham à cabeça, baralhadas ou dispersas, e mesmo que mais ninguém o compreenda, haverá espaço para o entendimento. Ainda que seja simplesmente o seu.

_____E o que pensa ele? Que há uma certa magia no encontro com as solidões do outono, quando o sol é ténue e morno. É um sol que ilumina sem aquecer e, por isso, quando o corpo lhe toca em tudo o que vive, reflete-se como num espelho onde ele se revela.

_____Experimenta a pulsação da estação como se bebesse instantes felizes do presente. Como se estivesse a saborear, com o prazer da lentidão, um cálice de um vinho amadurecido pela longa viagem e que degusta com agradável conforto.

_____Aprecia a memória de tudo aquilo que no passado o perturbou e hoje constata, com um riso de palhaço antigo que, afinal, lá onde foi e aconteceu, perdia-se demasiado em tolas ânsias de sofrer.

_____No outono, os olhos sobre as coisas são-lhe mais demorados. São como os olhos de um bicho atento.

_____Acarinha-se nas brevidades belas e descomplicadas e nelas descansa os sentidos.

_____As fervorosas certezas afloram-lhe na rugosidade das mãos onde o toque da ternura já só consegue ser naquilo que a pele esconde por dentro.

_____Fica calado. Contempla sem cismas. Para cá dos lábios consumidos pelas horas de muitos anos, não encontra dentes que saciem a fome, mas habita o sabor sábio de outros órgãos, como os da alma. 

_____Tornou-se um poeta de si que se salva, todos os dias, pelo que ri dele próprio.

_____Não sabe quanto mede ou quanto pesa. Nem isso o preocupa, porque não lhe apetece chorar lágrimas secas sem sal.

_____E enquanto saboreia o vagar que se lhe oferece para contar as folhas que caem das árvores e no chão adormecem contentes, descobre que, por trás da luz caída do momento, vai espreitando um outro brilho. A claridade privilegiada do luar.

_____É um espanto que o inunda e, sem querer, tantas vezes, o leva a ser menino outra vez. Dispõe-se, por isso, a somar de novo as estrelas. São a essência que lhe alimenta um sonho.

_____E ri-se sozinho. Todos imaginam que os velhos não sonham. Mas ele sonha, sim. Ele acredita e ninguém disso queira fazer prova contrária, que ali, naquele fundo de céu negro a aparecer no horizonte, aguarda-o quem outrora o abraçou e amou como mais ninguém fez.

_____Um dia chamou-a de ‘minha andorinha’ porque lhe veio morar no coração numa tarde de primavera. Já não lhe sente o nome. Lá em cima, vê somente uma espécie de pássaro vestido de branco, com asas que respiram o ar que ele também acolhe. Confia que, mais cedo ou mais tarde, voltará a esse princípio.

_____É que os velhos descobriram que há um encanto nascido dos mistérios. Ciência que os novos ainda não alcançaram. Lembra-se de uma famosa e inteligente senhora, muito assertiva por sinal, que viveu lá para os lados da Áustria e que, certa vez, ditou uma sentença que ele leu e nunca esqueceu. Afirmou ela que é na juventude que aprendemos, mas é com a velhice que compreendemos. Ora aí está toda a verdade. É como a verdade dele. A sua crença é suficiente para o trazer feliz.

_____O outono é um tempo simples.

_____Agora, consciente de que amanhã não estará de partida para muitos lugares, espera a noite com tranquilidade. Quando ela chega, aninha-se sobre os pedaços que a vida construiu, sem lhe acrescentar diferentes paisagens porque ao fechar os olhos percebe, sereno, que lhe é permitido esquecer o futuro. Agora, por fim, pode sentir apenas a existência.


 TEXTO: Paula Freire 

FACEBOOK: Flor De Lyz - Poesia & Fotografia 

Paula Freire é natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. É também desta editora o livro de poesia de sua autoria, "Lírio: Flor-de-Lis" (2022). Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, tendo organizado uma exposição com trabalhos seus, na cidade do Porto (a convite da Casa da Beira Alta), em setembro de 2022, sob o título: "Um Outono no Feminino: De Amor e de ser Mulher". 

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