"Acenou, me convidando a sentar. À mesa, três garrafas de Skol vazias, o copo pela metade. Puxei uma cadeira, pedi ao rapazote que me trouxesse água de coco."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA
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_____Encontrei Laupino no botequim. Gravata afrouxada, camisa desabotoada até a barriga, paletó na cadeira, a surrada pasta de couro no chão. Acenou, me convidando a sentar. À mesa, três garrafas de Skol vazias, o copo pela metade. Puxei uma cadeira, pedi ao rapazote que me trouxesse água de coco.
_____— Saí de uma audiência agora a pouco. Nada complexo, mas o suficiente pra me irritar. Se pudesse, nunca mais botava os pés nesse inferno.
_____E apontou o fórum do outro lado da rua. Em formato de “U”, o prédio ardia sob sol da tarde.
_____— Gosto de advogar. O problema é a desgraça desse fórum. Nada aí dentro anda nos conformes. Pra conseguir marcar essa audiência, foi um sufoco. Telefonei pra secretaria, fiquei em cima. O songamonga do escrivão justificava que estava esperando o juiz redefinir a pauta. O preguiçoso só faz duas audiências por dia, duas vezes por semana.
_____— Quem pode, pode né?
_____— Ação de indenização, coisa simples. Tramita no Juizado, podia ter sido sentenciada há mais de ano, não fosse a burocracia e vagareza daquela cambada. A audiência de hoje foi de instrução e julgamento. Acredita que a porra daquele bode velho ficou quase uma hora palestrando sobre ‘as benesses da conciliação’? As partes relutando, e aquela múmia insistindo. Acordo que já tinha sido tentado em duas audiências anteriores... Quando finalmente sua excelência se convenceu que não íamos conciliar, ouviu as testemunhas arroladas.
_____— E aí, ganhou a causa?
_____— Você acha que ele julga na hora? Que nada! Agora os autos vão conclusos à juíza leiga. Uma moleca pernóstica que se julga desembargadora. Daqui a uns quatro ou cinco meses a sentença sai.
_____— Nossa!
_____— Se pudesse, explodia essa zona. E seria bem no meio da tarde, quando a burocracia está em pleno funcionamento.
_____— Tem gente boa trabalhando aí...
_____— Inoperantes, todos eles. Entendo porque você defende esses chupins: tem gente aí dentro pra quem você empresta dinheiro. E a amante do oficial de justiça, ainda mora numa daquelas casas que você aluga?
_____— Ô, Laupino, fala baixo: isso pode dar encrenca...
_____— Dane-se! Ô, moleque, desce mais uma. E uma porção de amendoim pro meu amigo aqui que precisa ficar tinindo pra gatinha dele.
_____— Vou embora.
_____— Timidez agora, companheiro? A torcida do Flamengo inteira sabe que você papa a escrivã da Vara de Família.
_____— Psiu, ó, o menino aí.
_____O rapazote destampou a cerveja, serviu-nos uma porção generosa de amendoim. Guardou o abridor no bolso da bermuda, saiu.
_____— Ei, vem cá... Vou perguntar porque você tem idade pra isso. Se alguém dessa zona aí te desse bola, quem você comia?
_____Fiz como o garoto: baixei os olhos para a calçada empoeirada.
_____— Zona, inferno, desgrama, circo, hospício, casa da Mãe Joana... Ô lugarzinho asqueroso! E lotado de incompetentes e hipócritas. Perguntei quem você comeria, porque a assessora do quinto andar é papa-anjo e dá igual chuchu na rama. Mas no domingão, vocês precisam ver, ela na missa, toda carola, distribuindo hóstia com o padre, entoando salmos. No carro dela tem um adesivo, letras enormes, ‘sou feliz por ser católica’.
_____O rapazote sorriu, foi atender outra mesa.
_____— Para com isso, Laupino.
_____— Ele tem idade, tem que partir pro ataque. Dizem que essa assessora paga bem por uma piroca novinha. Vai que ele tira a sorte grande igual você, que come a escrivã...
_____— Chega.
_____— Calma. Melhor comer a escrivã que o viado da Criminal. Ih, não faz essa cara, não. Vai me dizer que desconhece quem é o viado da Criminal? Aliás, os viados. Nos corredores desse cabaré só se fala no gabinete gay. Desde que o meritíssimo assumiu, só dá bicha naquele gabinete, a começar por ele. Dizem que, debaixo daquela toga, se esconde uma bicha louquíssima.
_____— Laupino, para com isso.
_____— Por quê? A censura voltou e eu não estou sabendo? Gabinete gay, sim: juiz, assessor, os estagiários e o servidor que digita as atas. Tudo da irmandade do Seu Peru. Lembra do Seu Peru da Escolinha?
_____— Ô, garoto, fecha pra mim, faz favor.
_____— Será que esse aí... hum... de repente, ele frequenta outro andar do inferno.
_____— Você devia parar de beber.
_____— Tinha um meritíssimo aí nesse mafuá que achacava, na cara dura, os advogados. Me extorquiu dinheiro várias vezes pra julgar minhas ações procedentes. Além de corrupto, hipócrita: frequentava a igreja crente da minha rua com a família. De braços erguidos, gritava ‘glória, aleluia, glória’ o culto inteiro... Espia só quem vai naquele corolla ali!
_____— Quem?
_____— Faz de besta, não. É cliente sua, eu sei. Outro dia, essa mentecapta cagou num dos meus processos. Ao invés de expedir mandado pra intimar o réu, fez carga à AGE. E o Estado nem é parte naqueles autos. Reclamei com o escrivão. ‘Espera voltar’, o corno disse, e deu as costas. Os autos ficaram uns seis meses mofando num escaninho lá na capital. Quando voltaram, a Vara estava vaga com a morte da sua excelência... Graças a Exu, aquele achacador bateu as botas. Uma juíza assumiu a vara.
_____— Boa de serviço?
_____— Deve ser boa pra outras coisas. Tenho uma execução esperando o despacho inicial há mais de três meses. Outro dia, vim despachar com ela. Uma terceirizada com cara de mamão-macho não permitiu minha entrada. Disse ‘a magistrada está muito ocupada tratando de assuntos urgentes com o promotor’, e me despachou. Sei muito bem que tipo de urgência estavam tratando: os dois estão de trelelê.
_____Laupino também notou que, encostado na porta, o rapazote prestava atenção na conversa:
_____— Vai ser o quê quando virar gente?
_____— Queria ser juiz. Respondeu, sem despregar os olhos do chão.
_____— Do gabinete gay?
_____Sério, o rapaz ergueu a cabeça:
_____— Mexo com isso, não, doutor. Quero ser juiz pra acabar com a corrupção e a safadice desse país.
_____Laupino soltou uma gaitada, espalmou o tampo da mesa e pediu outra cerveja. As garrafas e o copo dançaram, os amendoins pularam do pratinho. Larguei dez reais sob o coco, e caí fora.
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