Inconvenientes

"Também sou do tempo das casas, tempo dos jogos de tabuleiro e de pegar varetas na calçada, das amarelinhas e queimadas, de amarrar a cara quando chovia." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____O outono invade o quarto. Debruço-me à janela, deixo entrar reminiscências de minha meninice. Elas vêm, lentas e inexoráveis, valsando com a partículas de poeira. Fico, pois, a recordar.

_____Não fui um menino de janelar. Ao contrário, com portas sempre arreganhadas, vivia ganhando o quintal, a rua. É como disse o Paulo Mendes Campos: criança do tempo das casas não ficava em janela, só nos dias chuvosos “amassando o nariz contra a vidraça, para ver o mistério espetacular das águas desatadas...” Também sou do tempo das casas, tempo dos jogos de tabuleiro e de pegar varetas na calçada, das amarelinhas e queimadas, de amarrar a cara quando chovia. Tempo de outonos mais frios, cujo sol nos cobrava moletons e flanelas e as noites, Vick VapoRub... Hoje, com essas ondas de calor atípicas, nem sei se podemos dizer que ainda temos outono.

_____Olho a rua.

_____Um panaca empina a motocicleta como se exibisse o falo no harém. A meninada de uniforme e mochila nem dá bola, segue desembestada ladeira abaixo. Os pedreiros na construção também o ignoram. Assim como eu, andam fartos desses exibicionismos idiotas.

_____Meio-dia, anuncia o relógio da igreja. Em debandada, pombos avoam sobre os telhados, deixando só – e, talvez, feliz – o bem-te-vi.

_____A notificação do zap me arranca uma praga. Na tela do celular, Genuíno, de braços estendidos, posa aos pés do Redentor. Outra notificação. Mais uma. Hoje não, seu inconveniente.

_____Me abandono na cama aquentada pelo sol, ligo a televisão: começa A Viagem. Deve ser a sexta ou sétima vez que assisto esta novela. Não sei o porquê, mas, de uns tempos para cá, estou preferindo rever programas e filmes. Acho, as novidades me cansam. Ontem mesmo, aproveitando a ociosidade do feriado, revi Os Caçadores da Arca Perdida. Se não foi a milésima vez, tá quase.    

_____A brisa roça meus dedos feios. Uma pomba pousa no parapeito da janela. Me encara. Decidido a ver quem vence o duelo, retribuo. Ficamos os dois assim, caubóis surrupiados de seu tempo.

_____O nome do elenco desliza no televisor, continuo a sustentar a mirada. A oponente também parece não querer desistir. Danação, será que ignora que este quarto é pequeno demais para nós dois? Franzindo ainda mais o cenho, tento manter a minha cara de mau.  

_____A pomba tomba o pescoço. Os tons esverdeados na plumagem cinzenta até que são bonitos. Beleza ordinária, convenhamos. Afinal, a maioria dos pombos que zanzam por aqui são brancos ou cinzentos com o pescoço esverdeado. Enfim, a duelista não apresenta nada novo, tal como a novela que retornou do intervalo.

_____O smartphone toca. Assustada, a bichinha foge para o telhado. Bem, não posso considerar uma vitória. 

_____— Pô, cara, cê não me responde!  

_____Putz, eu seria capaz de reconhecer essa voz ainda que estivesse à deriva no espaço sideral.

_____Sem esperar justificativa ou desculpa, Genuíno diz:

_____— Tô querendo saber se cê vai tá em casa de tarde.

_____Olho a televisão. Téo discute novamente com Diná, farto de seus ciúmes descontrolados. Também ando farto de tanta coisa, inclusive de gente chata.

_____— O livro chegou, cara. Eu tô querendo levar um procê.

_____Que livro? Me escapole.

_____— Ô, cabeção, esqueceu que publiquei um romance? Então, o correio me entregou o livro agora. Tá mais fresquinho que viado quando acaba de sair do armário.

_____Incrível como Genuíno não evolui: parece acorrentado mentalmente à quinta série. Consegue ser mais insuportável que o tio do pavê e aquela gente que envia áudios intermináveis.

_____— Fiz uma dedicatória de meia página. Posso passar aí?

_____Pego com você na academia, é minha proposta. Não o quero aqui em casa, torrando o meu saco, me narrando dilemas existenciais sem importância alguma. 

_____— Cê vai lá hoje?

_____Não tinha intenção de treinar o resto dessa semana. Contudo, quando o universo conspira, aos pobres mortais resta apenas resignar-se. E encarar a academia é, sem dúvida, bem melhor que suportar o Genuíno escanchado no meu sofá, falando de si e de seus textos enfadonhos.

_____— A gente se encontra lá pras três e pouca. Ah, dá uma olhada na foto que mandei. Valeu.

_____Religo o Wi-Fi. Uma avalanche de mensagens invade a tela. Áudios, frases mal digitadas, a foto do tal livro. Em tom esverdeado, o título parece ruir na cabeça de um homem cinzento... E, de repente, volta às minhas retinas aquela pomba.

_____Fecho a janela: basta de inconvenientes. Largo o celular na escrivaninha. Rogo aos amigos espirituais que me deem um pouco de sossego para, pelo menos, terminar de assistir minha novela.      


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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