Restam-me poucos minutos

“Rotineira. Assim defino minha semana. E por que não estender esse adjetivo à vida?”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 



_____A semana começou como as anteriores: sem perspectiva. Conto no calendário: faltam 147 dias úteis para o ano acabar. É chão pra burro, penso. As semanas giram, lentas, como um LP na vitrola. Vou levando. Como Deus manda, complementaria a comadre Maria, se estivesse viva. Sentado à escrivaninha... vou levando.

_____Sempre lento, o notebook recusa-se a abrir o Google Chrome. Precisa formatar, opina o informático leitor. Não, não precisa, retruco: precisa de um tabefe bem dado, como se fazia antigamente com as tevês.

_____Restam-me alguns minutos antes de tomar banho, almoçar, bater o ponto na repartição. Rotineira. Assim defino minha semana. E por que não estender esse adjetivo à vida?

_____O programa não inicia. Preciso imprimir o informe de rendimentos para o IRPF, preciso comprar o novo livro do Michel Laub na Amazon, preciso inscrever um conto no concurso, preciso revisar a crônica que deixei rascunhada no meu blog, preciso enviar um e-mail ao Luiz Inácio para parabenizá-lo... e o notebook, ditatorialmente, dita-me seu tempo. Ao meu lado, o celular marca o transcurso dos minutos. Se pudesse, certamente me mandaria parar de tamborilar com os dedos na escrivaninha.

_____Os minutos rompem a manhã. Parecem o Flash cortando as avenidas de Central City. Pego o celular, procuro sugestões no Spotify para serenar o espírito. O aplicativo, como um oráculo que tudo sabe e tudo vê, me sugere Richard Clayderman: entende que devo relaxar ao som de suas melodias ou será deboche mesmo? Para não me curvar às vontades doutro tirano tecnológico, deslizo o dedo na tela à cata de outra sugestão. Paro na playlist do Julio Iglesias. Há tempos não o ouço... Dónde caminará Julio?

_____Enquanto os acordes de Hey preenchem de nostalgia o vazio do quarto e uma aranhinha indelicada bole a tela do notebook, o logo do Google, finalmente, surge à minha frente. Restam-me poucos minutos: talvez dê para ouvir outra canção e, se o notebook não travar, acessar meu informe de rendimentos. O resto ficará para a noite.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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Comentários

  1. Esse texto retrata perfeitamente o que temos vivido ao longo desses dias!!! Parabéns Raphael!

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    1. Obrigado pela leitura. São tempos rotineiros e burocráticos. Infelizmente.

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