“Porque mesmo no meio da escuridão, há sempre uma razão para olhar o infinito com a sabedoria que a vida carrega nos ombros.”
REVISTA VICEJAR – ARTE E CULTURA ( Cinema )
“Dois homens olham pela mesma janela. Um vê a lama. O outro vê as estrelas!” (Frederick Langbridge)
_____O que faria ele para te ver sorrir?... Ele, que tinha o brilho da manhã no olhar e as estrelas da noite nos gestos serenos que encantam. O que faria ele?... Hoje não o saberás, mas sabe sempre que a história em algum lugar se repete.
_____Ele, o velho Isaach, o ‘filho da alegria’ como o pai o chamava e que na memória carregou as palavras deste: “a luz com que vês os outros, é a luz com que os outros te veem a ti”. Um provérbio africano, contaram-lhe. Para ele, a maior verdade com que caminhou pelos dias.
_____Acreditava sempre que um coração nunca carrega demasiadas dores quando nasce para fazer sorrir quem encontra pelo caminho. Isaach olhava, olhava com muita atenção a alma de cada irmão e descobria no sol que ali habitava, o mundo que a fazia sorrir. E, então, sorria também, porque só assim ele sabia ser feliz.
_____E feliz era agora, mesmo naquela cama de hospital, de um branco mal lavado, para onde as sombras da velhice o atiraram. Ah! Mas Isaach sorria ainda! Porque mesmo no meio da escuridão, há sempre uma razão para olhar o infinito com a sabedoria que a vida carrega nos ombros. É que Isaach não estava só. Com os seus sorrisos viajava Maurício, pequeno de estatura e olhos cor de avelã por cima da pele branca. Mais maldita seria a sua sorte, pensava com pena Isaach em cada dia que passava, pois que este seu ‘irmão’ nem da cama podia levantar-se. As dores no corpo moído eram demasiadas para o seu peso leve.
_____Assim Isaach lhe descobriu também a alma com a magia do seu coração. E em cada tarde de nuvens ou nesga de sol, aconchegava-se na ombreira da única janela do quarto e desfiava os seus sorrisos sob os ouvidos atentos de Maurício.
_____– Hoje, meu amigo, vejo ali fora no jardim, uma borboleta delicada que pousa sobre um vaso de margaridas amarelas. São irmãs das rosas brancas que moram no canteiro ao lado. - Cantarolava ele, saboreando o doce de cada palavra - Parece-me que lhes conta agora um segredo... Talvez se tenha apaixonado pelo gaio de dorso rosado que ontem pela tardinha por aqui voou.
E pela aurora seguinte, as paisagens do olhar desdobravam-se em continuadas ternuras cheias daquela vida lá fora:
_____– Esta manhã, meu irmão, o sol espreita mais feliz! No parque ali defronte, aquele pai caminha com o filho nos ombros e a mãe, de mãos dadas com o cestinho do lanche, é toda orgulho e vaidade dos seus amores! Como dançam os carinhos que os três partilham!
Isaach espreitava o companheiro deitado no seu leito, junto à parede, de olhos fechados e um sorriso gigante, a deleitar-se no som destas imagens que tanto o faziam sorrir também por dentro...
_____Mas a vida tem sempre o seu desfecho. E numa tarde amarga sem rosto, Isaach não conseguiu levantar-se da sua cama. Entre um respirar delirante e uma prece de súplica, os seus movimentos presos não lhe permitiram tocar no botão que apressasse os enfermeiros em seu auxílio. Sabemos amigos, que o homem ama mas também inveja. Foi nesse sentimento mais baixo que Maurício, em silêncio, deixou partir o companheiro para que veladamente o seu lugar pudesse ocupar e, dessa forma, poder sorrir também pelo seu próprio olhar.
_____Na manhã de primavera que se seguiu, cama ao lado desocupada, Maurício pediu a gentileza de ser colocado junto à nobre janela do quarto. E, ali, em esforço soberbo para decifrar o mundo que apenas vivera em imaginação, apoiou-se sobre a cabeceira da cama.
Assim, também ele viu o que Isaach, tão humanamente conseguira, só para o ver sorrir: do outro lado da janela... apenas um velho muro em ruínas.
Inspirado na curta-metragem estado-unidense, The Hospital Window (SpiritClips, 2012), de Alexander Soskin, escrita por Terry Brutocao e Robert Fried.
TEXTO: Paula Freire
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Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
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